Poemas : 

estar morto é o contrário de ter memória

 
momentos em que morro – morro para me apagar do mundo – estar morto é bom. estar morto é o contrário de ter memória. é sair do corpo. entrar por uma rua qualquer sem hora de retorno –

....................perguntam-me: a que horas voltas

não sei. não esperem por mim. vão comendo. não deixem arrefecer a comida – quando chegar como o que houver. aqueço os restos – sempre me dei bem com os restos. liga bem com o que resta de mim – nos restos acabo sempre por encontrar muito do que sou – não me importo de comer comida aquecida. às vezes até é melhor. está mais apurada. como eu – também sou apurado – gosto de paladares fortes. às vezes picantes. doces também. e salgados e insossos como nos hospitais. com a enfermeira a gritar em voz dominadora: o sr. doutor mandou fazer uma dietinha. tudo a meio sal. tem que ser sr. sampaio. é para seu bem –

....................quem é que sabe o que é melhor para mim. na minha doença não há doutores

não gosto nada de comida a meio de qualquer coisa. ou é ou não é. ou desce a garganta ou não desce – não suporto meias descidas. o meu paladar não aguenta estas coisas do era e não era – para mim não há trinta e seis. só o oito ou o oitenta – desde que a comida chegue inteira até pode tostar o céu-da-boca –

....................merda. a comida está quente pra caraças

é o único céu que conheço. sem constelações. sem estrelas. sem cometas a indicar acontecimentos de coisas que depois não acontecem. sem descobertas de novas galáxias onde meia dúzia de iluminados garantem que finalmente é possível provar a existência de extraterrestres – no meu céu-da-boca a única forma de vida resistente ao meu oito ou oitenta são organismos que vivem em comunidade com outros que não dou importância: parasitas – este ser vivo aproveita-se de mim alimentando-se de restos de palavras difíceis que. por não saber escrever. não sei engolir –

....................ainda não percebi ao certo se são os parasitas que vivem das minhas palavras. ou pelo contrário. sou eu que os alimento para não findar esta vontade de encontrar novas palavras

não importa – nada disto é essencial para deglutir o que me escalda o céu-da-boca – importante é saber que a dor existe. não há palavra sem dor. mas homem que é homem aguenta a dor – com o tempo fui aprendendo a proteger-me destas peladelas maldosas. tantas vezes te queimas que passa a ser hábito – comer muitas vezes é um verdadeiro inferno. mas se o que me chega à boca queimar dou duas voltas e mando tudo para baixo num só trago – prefiro que me queime as tripas do que o céu-da-boca. um homem sem céu não vive em paz –

....................o inferno conheço eu bem. já do céu sei o que vou ouvindo pelas esquinas do inferno

mas se a comida estiver esfriada também engulo. com custo mas engulo. não gosto de fazer dos restos mais restos – sempre ouvi a minha mãe dizer que estragar comida é pecado – o que aprendemos em criança fica para sempre. e pesa como chumbo. por muito que queiras modificar não consegues. afinal de contas foi a tua mãe que disse. e mãe só há uma e onde há mãe há um céu que não queima – por tudo isto não consigo estragar comida. prefiro estragar-me a mim. eu sou forte. aguento tudo. e quando a força me abandona morro. morto sou mais feliz do que quando estou vivo e não sou obrigado a comer o que não quero –

....................por favor não esperem. desta vez não sei quanto tempo preciso de estar morto

quando deixo de acreditar necessito de ficar morto – quando estou morto não tenho telefone. nem facebook. nem likes. nem email`s. máquina de lavar. micro-ondas ou outra qualquer tecnologia que produza metamorfoses que me usurpem esta vontade de morrer-catarse – inevitavelmente só a morte limpa o corpo. é assim comigo – acredito nesta inevitabilidade. por isso quero morrer. não sei por quanto tempo. mas também não é importante. o que me faz morrer não me faz viver –

....................a morte é a conquista definitiva do silêncio

quando morro encontro-me com um tempo só meu. um tempo de perdão. também preciso de me perdoar e quem sabe aprendo a perdoar os outros com mais doçura – quando estou morto esqueço os amigos. estimo-os demais para os obrigar a estarem presentes na vida de quem morreu – amigo é coisa séria. não é palavra vã. é sacrifício agradável – sempre que morro o barulho ao meu redor diminui. gente que desconheço parte para locais que nunca saberei entender – gente. apenas gente – desta gente que me abandona nada sei. sei que partiram porque o barulho também partiu – um homem com barulho não consegue pensar. se falassem. nem precisavam de falar para mim. bastava que falassem – gosto tanto de ouvir pessoas a falar umas com as outras – mas perdoem-me. bem sei que não sou justo. e logo eu que não suporto a injustiça. mas incompreensivelmente tenho amigos que fazem barulho e gosto deles. gosto de os ouvir. não suportaria vê-los partir para lugares que nunca saberia entender – não sou injusto. sou apenas um homem –

....................os homens dos oito ou oitenta acabam sempre por perder amigos – quem fala expõe-se

quando chego da morte tenho sempre menos amigos à minha espera – já não me importo. tanto se me faz. eles lá têm as suas razões e eu gosto demasiadamente dos meus amigos para os questionar. quero sempre o melhor para quem gosto – estou convencido que a culpa é minha. ando sempre a morrer de um lado para o outro. não deve ser fácil ter amigos que morrem por tudo e por nada – os tempos mudaram e os amigos já não são como antigamente – hoje cada amigo tem a sua vida. e a maior parte dos que conheço nunca quiseram morrer. são felizes com barulho e estão sempre a sorrir de coisas que não sei valorizar – antigamente a palavra amigo era coisa de responsabilidade. amigo tirava a própria roupa do corpo. para dar ao seu amigo –

....................dá cá mais um aperto nestes ossos sampaio

o último tratado de amizade que li deixou-me com vontade de nunca mais morrer por coisa nenhuma – o romance do escritor húngaro sándor márai. as velas ardem até ao fim – nunca mais fui o mesmo. agora não me sai da ideia de um dia poder morrer por uma amizade igual à do henrik. esperou mais de quarenta anos para terminar o julgamento com o seu amigo konrad e assim poder morrer pela última vez com o amigo de uma vida – os livros são sempre tão bonitos e ensinam tanta coisa. tanta coisa de outras vidas – queria ser um livro assim –


....................como é que vou encontrar uma amizade para morrer feliz?

desculpo com mais facilidade aqueles que meteram papelada assinada sobre palavra-de-honra para uma amizade eterna e que. por um qualquer cansaço. separaram o abraço e partiram com a coragem de uma despedida do que aqueles que partem sem dizer que partiram– não gosto de perder amigos. tenho tão poucos e espaço também – quando deixo entrar no corpo novos amigos os que tenho ficam mais apertados. não é justo – nos dias de hoje nunca sabemos quem é o verdadeiro amigo. é tudo tão passageiro. tão material. tão interesseiro – não gosto de ver os meus amigos apertados por outros que não sendo verdadeiros amigos ocupam um espaço reservado a afetos do coração – esqueço igualmente os inimigos. os que fazem barulho e também os silenciosos. os indiferentes. os ingratos. os mal educados. os desarrumados. os que lhes falta bom-senso e que por via disso se tornam injustos teimando em atribuir a culpa ao feitio – todo o pecado tem remissão –

....................o meu corpo cada vez está mais apertado

quando morro. sinto obrigação de morrer de vez. não gosto de morrer aos bocadinhos – não sou capaz de fazer morrer o fígado num dia e no dia seguinte decretar a morte de um rim. ou pior ainda. estrangular a garganta numa semana e passado um mês silenciar os lábios – não sou capaz. não sou homem para deixar morrer o que é meu aos bocados. mesmo que nenhum dos órgãos já não valha grande coisa – não. não seria possível. não fui feito com esse fermento. não consigo ficar a levedar para morrer atrancado de palavras azedas – quando morro estou morto. estou todo morto ao mesmo tempo –

....................um homem de bem morto vale por dois

os mortos têm honra mesmo depois de mortos – não gosto que me tentem ressuscitar com velórios harmoniosos. criados em tempo que não sendo genuíno já não servem para coisa nenhuma e que por estar morto não ouço – estou morto porque optei por morrer. certo ou errado gosto de estar assim é no mundo dos mortos que melhor vejo os vivos – e não tenho dia certo para ressurgir. escusam de esperar. vão às vossas vidas e não deixem arrefecer a vossa comida – a maior parte de vocês não está preparado para comer a comida fria e muito menos aquecida –

...................há palavras que por serem verdadeiras não podem ser ditas em vida. magoam mais do que a própria morte

sou muito melhor morto do que vivo. morto não falo. nem me zango. nem olho para o lado. nem para cima e muito menos para baixo – detesto olhar para baixo quando tudo o que faço é para manter a cabeça em cima – com a cabeça em cima tenho os olhos em cima. e os olhos nunca me enganaram – quando morro esqueço a falta que me faz ser desejado. esqueço os que não tem amor próprio. os que não sabem que amar é dar mais que receber. esqueço todas as dores que não são do corpo e as do corpo também – quando morro esqueço que a vida continua mesmo para quem está morto por tempo indeterminado –

....................morto compreendo melhor o mundo dos vivos

não quero que esperem pela minha volta à vida. desta vez morro para poder descansar da vida – há momentos em que é melhor estar morto do que vivo – gosto de estar morto. quando estou morto tenho a certeza de que não posso voltar a morrer. estou protegido da vida – * “Por vezes é preciso morrer para ver melhor. Morrer para renascer.”
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*“Por vezes é preciso morrer para ver melhor. Morrer para renascer.” - Paulo José Miranda


não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu


 
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sampaiorego
 
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Enviado por Tópico
Jmattos
Publicado: 05/06/2014 02:53  Atualizado: 05/06/2014 02:53
Usuário desde: 03/09/2012
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Mensagens: 18165
 Re: estar morto é o contrário de ter memória
Parabéns Poeta
Perfeito! Prosa emocionante!
Penso que fazendo me de morta vejo melhor os vivos e fico triste em descobrir que conhecendo os vivos, a minha vontade é de permanecer morta!
Obrigada por partilhar!
Beijos!
Janna


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 05/06/2014 15:35  Atualizado: 05/06/2014 15:35
 Re: estar morto é o contrário de ter memória
Gostei muito!

Amo ler textos assim... meus parabéns!


Um abraço,


ALICE


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 05/06/2014 16:41  Atualizado: 05/06/2014 16:41
 Re: estar morto é o contrário de ter memória
No nível do espírito decidimos descer a escuridão para iluminar.
O que tiver que fazer faça, pois outro não fará.
O bastão lhe foi entregue, não há mais intermediários.
A decisão é sua, todos os caminhos estão abertos e livres.
Seja, faça, escolha.
A responsabilidade é toda sua.
Fim de jogo.
Abraço de paz

Fonte: http://www.luso-poemas.net/modules/ne ... ryid=271882#ixzz33meYzBYK


Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 08/06/2014 06:08  Atualizado: 08/06/2014 06:08
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 18598
 Re: estar morto é o contrário de ter memória
onde é que vou encontrar uma prosa de cores
que não posso carregar? dona de tudo, da comida
requentada, onde não sou mesmo nada, só o corpo
que vale por dois e carrega a vertigem do prato.(aff)
querido, simplificando: obrigada. (beijo)