Estávamos sentados e sonolentos, ela mais cansada que eu, ficou com a cabeça repousando sobre meu ombro e bocejava continuamente.
A viagem seguiria dentro de alguns minutos, os trilhos já tinham sido reparados e o funcionário responsável por nosso vagão havia sido muito atencioso. Não havia do que reclamar, tudo transcorreu perfeitamente.
"Lucian, você vai deixar de me amar se eu te contar um segredo?"
Olhei em seus olhos profundamente. Não, eu jamais deixaria de amá-la, fosse qual fosse o segredo. Nunca deixaria de amá-la.
"Já lhe disse que prefiro que me chame de Artyom..."
Klazkha virou-se em direção à janela, e sorriu de maneira murmurante. O som emitido por seus lábios era quase todo infantil. Ela era toda infantil, infantil com toques de malícia ocultos por todo o seu corpo perfeito e suas feições delicadas.
"Você não me respondeu... Vais deixar de me amar se eu contar um segredo? Por favor, responda Lucian..." - Seu tom de voz era certeiro, ela me tinha em suas mãos e sabia disso.
O trem começou a se movimentar, e junto a este evento, uma fina precipitação de neve descia do céu, tal qual as plumas da garça divina que dança, sempre quando chove. Eu estava atônito com tais perguntas, pois embora soubesse que Klazkha poderia ter um passado obscuro, nunca atentei-me para isto antes do casamento, e agora esse segredo teimava em querer chegar-me aos ouvidos.
"Não, Klazkha, não deixarei de te amar... Mesmo que os céus me obriguem a isso, eu não deixaria de te amar."
Ela sorriu, diante de minha impetuosidade. Nós russos, ou somos muito religiosos, ou não somos fiéis a nada que não seja concreto. Para os que não são fiéis à religião, existem duas divindades: A mãe terra, sagrada Rússia, e A senhora da morte, Neve, que a tudo impede de florescer.
"Sabia que podia contar contigo, Lucian... Olha, daqui dá pra ver o \'nosso\' chalé... - Ela dizia que era nosso, mas na realidade foi alugado àquela época, para nossa lua de mel. - Então... Vês o chalé?"
Olhei pela janela, e o vi, tão nítido quanto a neblina permitia.
"Vejo, e o que tem?" - Respondi, já nostálgico.
"Ali jaz a melhor parte de nosso amor... Éramos sinceros e apaixonados. Durante a lua de mel, houve tanto sentimento expressado, que poderíamos dividi-lo por uma vida inteira, porém preferimos gastar em poucos dias ou até mesmo horas. Nunca mais nos amaremos como fizemos ali, na lua de mel. Seremos agora companheiros, amigos e brigaremos por coisas que antes não importavam, faremos sexo no início pelo desejo, e por fim, pela obrigação. Estamos condenados a cair na mesmice... Mas acho que é isso que é o amor, não é? Sacrificar o sentimento para estar ao lado e cuidar de quem você ama. É isso que é o amor não é Lucian?"
Não imaginava que seu pensamento pudesse chegar à questões tão profundas. Talvez fosse a Vodka, talvez fosse hipotermia, ou talvez ela estivesse mesmo dizendo aquilo, e eu é que estava bêbado.
"Acho que sim... Mas porque você achou que eu deixaria de lhe amar por isso?"
Ela sorriu.
"Você não pensou no lado prático da coisa quando pediu-me em casamento. É isso... Eu poderei engravidar e engordar, meus seios irão cair e minhas pernas irão ficar mais feias. Talvez eu sofra algum acidente doméstico, enquanto faço comida lhe esperando, e deforme alguma parte do corpo. Talvez você queira deixar-me, mas vai sentir-se obrigado a continuar comigo, porque um dia, jurou me amar e ficar ao meu lado pra sempre."
Estava atônito. Ela tinha razão em partes, talvez tudo isso acontecesse, mas não há como prever o futuro, não há porque não tentar vivê-lo.
"Klazkha, pare com tantas bobagens..."
Ela sorriu.
"Guarde bem, Lucian Artyom, guarde bem esta última vista do Baikal... A partir daqui nosso casamento pode seguir dois rumos. Um amor fraternal que durará a vida inteira, ou um inferno conjugal no qual nós dois escolhemos entrar."
E dentro de dois minutos, ela já havia mudado completamente de assunto. Seu rosto estava todo sorridente, e o nosso trem seguia seu destino, rumo ao oriente distante, onde o frio e as incertezas nos aguardavam, implacáveis.
Atrás de nós, o Baikal começava sua rotina anual, congelando-se lentamente a cada segundo passado.
"Ponha sua mão num forno durante um minuto e isto lhe parecerá uma hora,
Sente-se ao lado de uma bela garota por uma hora e isto lhe parecerá um minuto... Isto sim é relatividade!"
(Albert Einstein)
Um dos meus favoritos.