O tempo é um carrasco silencioso que nos vai enganando com requintado cinismo. Enquanto nos sorri pela frente, fazendo-nos acreditar no tanto que ainda está por vir e nas maravilhas que ainda temos para ver e viver, vai-nos enterrando a sua afiada lâmina por detrás do pescoço sem darmos por isso. Um dia apercebe-mo-nos quando já não passamos da sombra daquilo que fomos, reflectida no espelho da indiferença dos outros. Tenhamos ou não tenhamos sido, com mais ou menos importância, dentro do nosso pequeno mundo. Por vezes a morte devolve alguma dignidade a alguns. Outros há que não terão a mesma sorte. Mas o que importa isso para quem já não estará cá para ver? Porque fica bem? Por descargo de consciências? Então e enquanto se por cá vai andando, não se deveria merecer mais do que isso?
Ainda há dias aconteceu um episódio que me deixou a pensar nas importâncias e no seu prazo de validade, quando um pediatra de renome, do alto dos seus noventa e dois anos, sentado na cadeira das análises dizia para o técnico que o estava a atender quem tinha sido e até uma história que se preparava para contar, mas a urgência não pára e havia muitos outros doentes em fila de espera. De maneira que a história ficou só pelo começo e o velhinho lá se levantou a custo levando a história consigo para outro lugar onde houvesse quem tivesse mais vagar de a ouvir. Talvez aos seus colegas de enfermaria, se se desse o caso de ficar internado.
E ontem mesmo uma idosa, na mesma cadeira, se virou para quem lhe apertava o garrote no braço e lhe diz: "sabe, eu trabalhei nesta casa trinta e cinco anos, lá em cima no piso três, na bioquímica".
Mas ninguém a reconheceu, ainda que aquela cara me não fosse estranha de todo. Se calhar já se deve ter reformado há muitos anos e como acontece a tantos outros, deixa-se de ver, vai-se esquecendo.
É assim. Um dia seremos nós, cada um a seu tempo. Podem contar com isso!