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36ª foto - episódios

 
Armado em carapau de corrida, lembrou-se que não lhe apetecia estar calado. Com uma tirada de mau gosto interpelou a jovem do lado. Claro está, que levou com um olhar de esguelha e, se insistisse, ainda se habilitava a um par de estalos.
Era um tipo matacão, de nome otomano e ar de chico esperto. As sardas por cima do nariz não enganavam. Estava-lhe na massa . Não tinha o dom da empatia mas ninguém o podia acusar de não tentar, simplesmente, não era fadado para isso.
Quando nasceu, o dia estava tempestuoso e, talvez tenha sido um prenúncio.
No outro dia, quando saiu de casa, deu de caras com um vizinho que reclamava porque os cães mijavam sempre no poial da sua porta e, ele, soltou uma gargalhada. O homem não lhe achou piada nenhuma e não passou sem lhe atirar uma alfinetada desagradável. Afinal de contas, também tinha um bicho que era useiro e vezeiro no mesmo hábito. Não se ficou.
- Ó amigo, quem que lhe manda ter uma cadela que anda sempre aluada?
O outro tipo ficou furibundo ao entender a boca como se tivesse sido dirigida à esposa (entendimentos revisteiros de outras voltas). A fama de maria vai com todos da mulher era muitas vezes ponto de chacota. Logo ali se arranjou um arranca rabos ao melhor estilo dos bairros velhos.
Era ver as janelas cuscas todas entreabertas e escutar os cochichos em surdina.
O otomano até nem era má pessoa. O gajo tinha tanta generosidade como falta de tato. Não conseguia amealhar nenhum e não deixava ninguém com sede lá na tasca do Rato. Amigos, só tinha os que se chegavam a ele para beber à borla.
- Quero lá saber. Um dia alguém vai fazer o mesmo por mim.
Era assim que sabia ser.
Quando o pai morreu, chorou que nem um perdido e embebedou-se. Apanhou uma cardina de caixão à cova e logo correram quinhentos cães a um osso. Pagou tanta bebida e a tantos que no outro dia, ao acordar, apercebeu-se que, do seu salário de calceteiro, só tinha o pó. Coitado. Nesse mês andou à míngua e foi forçado a pedir algum emprestado. Escusado será dizer que, nos meses seguintes, se arrastou penhorado
e a tentar fiado.
Hoje lembraram-se o governo dele. Há meses que estava sem trabalho e recebeu uma carta do fundo de desemprego. Não houve surpresa. O murphy lá tinha a sua razão... se corre mal, vai correr pior. A singela carta era só para o informar que para o mês que vem já não tinha direito ao subsídio.
Que merda de vida.
Aa tasca do rato já não existia. A conversa dos impostos e das inspeções sanitárias tinham acabado com o canto.
Foi por aí e viu-se no metro ao lado de alguém... lembrou-se que não lhe apetecia estar calado. Com uma tirada de mau gosto interpelou a jovem do lado. claro está que lhe atirou com um olhar de esguelha e, se insistisse, ainda se habilitava a um par de estalos.
Episódios...


A boa convivência não é uma questão de tolerância.


 
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Valdevinoxis
 
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