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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
gosto de ver o mar. gosto de me sentar de frente para o mar. às vezes também de lado – quando estou de lado devoto um olho ao mar e outro à terra e interrogo-me como seria a terra sem mar – seria uma terra sem peixes. sem estrelas-do-mar. sem búzios. sem barcos. sem iodo e sem sal – de seguida pergunto-me o que seria do mar sem terra – seria um mar sem marés. sem dunas. sem gramíneas. sem varinas. sem gaivotas e sem crianças a fazer castelinhos de areia – não consigo imaginar o que seria de um sem o outro – onde esfriava o sol ao fim do dia sem mar? como nascia o sol aos pulinhos se não houvesse montanhas? há sol porque há mar e terra e eu só existo porque a terra me aceita nesta posição de queixo nos joelhos. com braços apertados ao coração a olhar o mar num silêncio feito de um vai e vem de água que também é memória – ali fico. incrivelmente estático. a olhar o movimento da maré. e tudo que é mundo vem para cá e logo de seguida o mundo todo parte para lá. e as gaivotas voam por cima dos meus sonhos num ir e vir igual ao mundo – como gosto de gaivotas. não me canso de as ver. fico sempre com a ideia que são elas que guardam o mar. sempre tão elegantes. tão livres. tão cheias de vento. tão donas de si. gostava de ser assim – nunca lhes vi uma ponta de medo nos olhos. mesmo quando o vento norte está furioso – no corpo um silêncio total. e tudo que é sonho a lutar com braços que já não chegam para tapar os olhos – desaparecem aos poucos os sonhos e tudo é igual à última agonia dos afogados. tudo na cabeça. tudo tão real. tão certo. tão fácil de alcançar. e afinal ali vão eles. para lá. enrolados em espuma e sargaço morto. e tudo que era certo cada vez mais para lá da rebentação. mais longe. e os olhos a deixar cair o silêncio à areia. talvez vergonha. talvez cansaço. talvez o corpo seja mais humano do que eu imaginava e o que era confiança é incerteza. talvez tenha chegado a hora certa para desistir e partir – não tenho medo da morte. nunca tive – a certeza do meu mundo foi minha no passado – amargura com sal – aqui estou a ver o fim de um horizonte que não vou alcançar. a dor a dizer que estou vivo. arranho-me. rasgo-me. atiro contra o corpo o que tenho para sobreviver e tudo por dentro a queimar e os gritos abafados não saem para não estragar o silêncio do mar a trazer para terra tudo que não presta – ali estou eu em pedaços que não sei contar. nem juntar. nem entender. espalhado pelo areal a servir de alimento a caranguejos que se alimentam de sonhos mortos – o que o mar leva vivo traz morto – nenhum sonho sobrevive a tanto mar – o mais certo é já estarem afogados ou talvez quem sabe estão amarrados a uma apara de madeira a resistir às tempestades feitas a norte – é preciso evitar a morte de quem sonha – o que seria do mundo sem sonhadores? não sei. não sei mesmo. e também não sei imaginar – bem gostava de saber algumas coisas que me fazem falta para poder continuar a sonhar. mas não sei. cada vez sei menos – quem sabe foram engolidos por uma orca assassina ou levados para o fundo do mar por um polvo gigante. que de tão enorme e pesado. só consegue vir à superfície uma vez em vida – se assim é escuso de ter esperança. já estive à superfície uma vez. era criança e o meu pai segurava-me pelo queixo enquanto me dizia para mexer as mãos e os pés em ritmo acertado com a respiração. mas eu teimava em fazer à minha maneira – não adiantou. quando me tirou a mão não me aguentei. afundei – nunca fui capaz de ficar de barriga para o ar em cima da água. boiar. fingir que era barco à vela. a bolinar a vento bom. sentir o céu a correr atrás das nuvens e o grito do marujo-vigia a sair com raiva dos pulmões: terra à vista. terra à vista – mas não. nunca avistei as terras quentes do sul. nunca me aguentei muito tempo a boiar. a água tapou-me os olhos e logo de seguida a boca. talvez não quisesse que eu visse a sorte. e falasse muito menos. sempre tive o coração ao pé da boca – raio de feitio. nunca abdiquei de dizer o que pensava mesmo quando o silêncio é bom senso – e eu ali sentado no areal. encutinhado. enroscado em mim. a parecer mais pequeno do que sou. e os olhos parados naquela imensidão de água – ali estou. só. sentado. sentido e delimitado por um pedaço de terra ora seco. ora molhado – esta coisa das marés fascina-me – faz silêncio em tudo que é lado. na terra e no mar. dentro de mim também. tudo é feito de silêncio. o coração bate em silêncio. o sangue corre em silêncio. os ouvidos ouvem em silêncio. os cabelos ondulam em silêncio. até a brisa norte corre para sul num silêncio de arrepiar o corpo – o movimento do meu mar faz um silêncio que me abraça com força – ali fico eu a olhar o que me resta do mundo – o que no mar nasce ao mar tornará. lágrima