Crónicas : 

O velho, a velha, o cão, o gato, o pássaro (e a puta da pobreza)

 
A pequena avenida atapetada de pedra cinzenta amaciada pelo tempo e pela invernia, de arestas carcomidas pelo desgaste da memória desemboca numa casa anterior a si própria, pobre de granito esbatido pelo vento e vergado pelo tempo, coberta de telhas musgosas onde pontilhavam outras pedras que lhe conferissem peso às agruras do vento norte.
Ao portão ferrugento da casa pobre, um cão pobre lambia as mazelas dos ossos macerosos que lhe rompiam o pêlo nas articulações das patas em pústulas nojentas. O gato pobre em cima da figueira descabelada pelo outono tardio olhava ansioso um pobre pássaro engaiolado pela prisão do tempo convertido em finas tiras de velhas tábuas que lhe traziam a saudade, a senilidade estática de um passo curto sem asa.
Assim de fora ouvia-se o crepitar de um fogo alimentado pelo sopro de uns pulmões velhos e por cada inspiração ouvia-se uma espécie de guinchar de travões vindo lá do fundo num eco baixo mas ensurdecedor à sensibilidade humana. A velha pobre expirava depois num esforço esvaído de corpo curvado e combalido, olhos cinzentos como a pedra da calçada, ossos esticados em fome pungente.
O arrastar dos tamancos do velho pobre anunciavam a sua chegada vindo das traseiras onde desafogou os interstícios carregando o cheiro a mijo como uma aura à sua passagem.
O cão ganiu, o gato miou, a velha guinchou e o pássaro piou, trovejou o céu mal disposto e o velho mandou a puta da pobreza para o caralho. Morreu fulminado por um bafo de pobreza, num sopro de santidade devota a um Deus que o esqueceu, a ele e a todos os pobres, da casa que jaz no fundo da avenida cinzenta, encimada pela igreja orgulhosamente caiada de branco.

 
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jaber
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Enviado por Tópico
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Publicado: 25/04/2014 22:50  Atualizado: 25/04/2014 23:00
 Re: O velho, a velha, o cão, o gato, o pássaro (e a puta ...
Para mim o ponto nevrálgico ( de dor mesmo, eu falo)do teu texto é essa gradual redução do humano ao estado de coisa, a aproximação do homem ao animal, onde tudo vai se reduzindo ao abandono, pela força da miséria. Tudo diante do edifício "caiado de branco" da igreja.
É um texto fantástico, inteligente, acima de tudo de um valor literário ao qual as pessoas deveriam atentar, nós, que estamos neste mesmo exercício em busca de bem escrever.

Prazer em te ler, sempre.

Bjs.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 26/04/2014 13:42  Atualizado: 26/04/2014 13:42
 Re: O velho, a velha, o cão, o gato, o pássaro (e a puta ...
embora existam os que não querem ou que não gostem de uma boa leitura, advinda de quem bem escreve, acho que não se pode desistir.. embora haja quem defenda essa pequenez excessiva a ao espaço literário que temos, é bom ver que existe espaço também, para aqueles que dignificam o site luso-poemas..

ademais incursões à morada do compadrio sem-vergonha e ademais indicações de quem bem defende essa patifaria, eu fico contente de ver e ler, algo bom, enfim..


quanto ao texto, eu achei profundamente sombrio, sem escalas ao otimismo, qual fosse um filme negro daqueles ao estilo de "a metamorfose"(kafka) onde até a fuligem, é sentida. rs
uma viagem adentro de um poço frio e fundo onde mora a insatisfação daquilo que é.. fim.
o teu texto é o fim, de quem o aguarda. é um filme trash, dos anos anteriores, e com a carga evolutiva da qualidade que prende o leitor até o fim da última palavra, nele(texto), descrito.


e,
é melhor eu parar por aqui.


um Abraço,