O que mais há na terra é paisagem*
Em abril há uma terra e uma paisagem
Hoje ouvi os discursos de um abril a sufocar
Com asma do tempo
E medo da idade
Nem velho nem novo
Mas sem Alzheimer, na memória do povo
Hoje ouvi os discursos da memória sem tempo
Mas também os do tempo sem memória
Hoje ouvi os discursos da responsabilidade
E os da culpa dos outros
As palavras da história
E as histórias das palavras
Contadas porque não as conheceu
Porque quem em Abril não nasceu
Nem morreu
Os discursos dos que só veem a paisagem
E o chão
E se esquecem que todos os dias
Nos sapatos lhe caga um cão, um gato, um coelho
Ou um fedelho
O que mais há é quem não veja senão paisagem
E se esqueça da terra
Quem olhe a planície e se esqueça da serra
Ouvi
Ouvi hoje os discursos de um abril a sufocar
Seco pelas rugas
Húmido pela juventude
Um abril devassado por muitos
Mas virgem na virtude
Ouvi hoje os discursos de abril
Sempre
* José Saramago, Levantado do chão