A claridade do sol espantou o sono e despertou uma ressaca brutal, a penetrar – me as retinas de miopia bêbada e atordoada. Um lençol no chão, talvez expulso a pontapés dessa cama agora imensa e desconfortável.
O bilhete encima da mesa de cabeceira, pregado com raiva e fita durex: “Rubens, fui embora com as crianças. Estou na casa de mamãe, nada quero de ti, senão distância e compreensão com os nossos filhos. Já sofremos demais. Melhor sonhar sozinho. Dói menos. Lembre: Não existe ex-pai. Júlia”.
Fiquei, na preguiça sofrida de acordar abandonado .Não era a primeira vez, Mas agora existiam as crianças , que desconfiavam ter um perdedor como pai . Um cara ridículo. O único palhaço do mundo que não pintava o rosto, porque não acreditava ficar mais engraçado.
As festas foram minguando. O trabalho sumindo, os meninos cada vez menos queriam estar comigo. Júlia, bem, melhor nem falar. Mas tenho de falar. Sempre foi minha parceira de trabalho, muitas festas infantis para animar. Fiquei sozinho com isso tudo. Acabou-se o prazer do riso da meninada.
Ela também era uma sonhadora. Tinha um emprego de professora na escola municipal e isso ajudava a manter - lhe os pés no chão e pagar algumas das nossas contas. Nossa vida era mesmo a comedia dell’arte .
Agora, aprender a fazer sopa de pedra. O pedregulho estava dentro de mim mesmo. A meninada queria mais efeito especial que arte cênica, a palhaçada pura. A cama elástica e o gelo seco podiam mais que minha cara limpa . Mas ao contrário do escritor, minhas idéias subiam no trapézio e se esborrachavam no chão e ninguém ria das suas quedas.
Ficou uma, balançando- se, medrosa, pensando no próximo passo, pois era tudo improviso mesmo. Fui até Queimadas, conversar com o velho Melquisedeque, meu fornecedor de bexigas e muito antenado nessas coisas de animação.
Encontrei – o no fundo da oficina. Um cigarro apagado na boca, rolando pra lá e pra cá naqueles beiços encarquilhados. Levantou a cabeça quando entrei ,mas nada falou.
Cada doido com sua mania. Responder cumprimento dá azar? Como sempre , direto ao assunto :
— Que queres, palhaço da cara lisa?
Falei das minhas dificuldades. Das novidades que me deixavam cada vez mais para trás. O velho escutou e como sempre, respondeu sem olhar para mim. Dirigiu – se desta vez ao velho torno instalado na mesa .
— Volte daqui há duas semanas.
E voltei. Vendeu-me uma engenhoca de bico ajustável, para adaptar ao meu velho torpedo de ar e uma caixa de bexigas enorme como eu nunca vira antes. Tirou uma da caixa, ligou no seu torpedo e em trinta segundos, eu tinha uma odalisca ao alcance da mão.
Ri bastante. A surpresa maior que a alegria, por sinal bem salgada. Fiquei reduzido ao dinheiro da passagem da volta e olhe lá. Mas foi um sucesso.
Não, uma explosão. O palhaço da cara lisa e suas bexigas mágicas atraíram de volta a meninada. O dinheiro voltou a aparecer. Todos queriam hipopótamos amarelos, elefantes azuis, girafas violetas, serpentes prateadas imensas.
Meus filhos adoravam enche-las, ver a borracha informe virando bicho, boneco, caldeirão de bruxa.
Uma noite, resolvi conversar com Júlia. Encontrei-a sorridente, mas um riso de pé atrás, falso, de janela entreaberta. Falei das boas mudanças . Respondeu-me já saber de tudo pelas crianças.
Falei da solidão e do desejo de voltarmos a partilhar tudo como antes, com dinheiro e sem cachaça.
— Rubens, meu amor – a carícia no meu rosto, falsa feito nota de três reais – serás sempre um perdedor. Teu problema é mais profundo que falta de grana. É na mentalidade, o pensar pequeno. Quando a febre das bexigas acabar, voltaremos ao zero inicial .Ainda te amo , mas amo também minha vida e nossos filhos .Não dá . Sofri muito ao descobrir e admitir isso para mim , mas não dá .
E não dando , saí pela noite , ouvindo o som das TVs ligadas dos vizinhos, o contraponto eletrônico de minha decepção . Deitei mas o sono não queria nada mesmo comigo.
Levantei – me, peguei a garrafa térmica ainda com café e fui até a oficina. Sentia–me leve , porque tinha feito o que tinha de ser feito . Agora,completar a obra.
E aqui estou em meu navio. Meu galeão de ar, olhando as pessoas lá embaixo, espantadas, no começo da sua manhã. Admirando a beleza de meu vôo em direção ao sol, um Ícaro de asas de borracha, em direção ao infinito, longe deste mundo, insensato e feio.
andrealbuquerque