Na haste
hierática e vertical
pompeia.
Sobe para a luz e para o alto
a flor...
Ainda não.
Veio de longe
Muda viajeira
dentro de um plástico esquecida.
Nem cuidados dei
à grande e rude matriz fecundada.
Apanhada num monte de entulho de lixeira.
“Cebola brava” na botânica
sapiente de seu Vicente.
Oitenta e alguns avos de enxada e terra.
Sabedoria agra.
Afilhado do Padim Cícero.
Menosprezo pelas “flores”:
“De que val’isso?”
Displicente, exato, irredutível.
E eu, meu Deus,
extasiada,
vendo, sentindo e acompanhando,
fremente,
aquela inesperada gestação.
– Um bulbo, tubérculo, célula
de vida rejeitada, levada na hora certa
à maternidade da terra.
A Flor...
Ainda não.
Espátula. Botão
hígido, encerrado, hermético,
inviolado
no seu mistério.
Tenro vegetal, túmido de seiva.
Promessa, encantamento.
Folhas longas, espalmadas.
Espadins verdes
montando guarda.
A expectativa, o medo.
Aquele caule frágil
ser quebrado no escuro da noite.
O vento, a chuva, o granizo.
A irreverência gosmenta
de um verme rastejante.
O imprevisto atentado
de alheia mão
consciente ou não.
Alerta. Insone.
Madrugadora.
Na manhã mal nascida,
toda em rendas cor-de-rosa,
túrgida de luz,
ao sol rascante do meio-dia.
No silêncio serenado da noite
eu, partejando o nascer da flor,
que ali vem na clausura
uterina de um botão.
Rombóide.
Para a Flor...
Chamei a tantos...
Indiferentes, alheios,
ninguém sentiu comigo
o mistério daquela liturgia floral.
Encerrada na custódia do botão,
ela se enfeita para os esponsais do sol.
Ela se penteia, se veste nupcial
para o esplendor de sua efêmera
vida vegetal.
Na minha aflita vigília
pergunto:
– De que cor será a flor?
Chamo e conclamo de alheias distâncias
alheias sensibilidades.
Ninguém responde.
Ninguém sente comigo
aquele mistério oculto
aquele sortilégio a se quebrar.
Afinal a Flor...
Do conúbio místico da terra e do sol
– a eclosão. Quatro lírios
semi-abertos,
apontando os pontos cardeais
no ápice da haste.
Vara florida de castidade santa.
Cetro heráldico. Emblema litúrgico
de algum príncipe profeta bíblico
egresso das páginas sagradas
do Livro dos Reis ou do Habacuc.
E foi assim que eu vi a flor.
Cora Coralina (1889-1985), poetisa goiana, In: Melhores poemas, 3ª edição. SP, Global, 2008, p. 313.
Imagem: Claude Monet - Nympheas blancs et jaunes, 1917 at Kunstmuseum Winterthur Switzerland .