Existem sonhos que você nunca esquece. Esse é um deles. Ando por um longo corredor de árvores enquanto olhos me observam nas sombras da floresta. Não sei onde estou, mas sei que este é o lugar certo. Sinto medo, não, mais que isso. Sinto que algo terrível vai acontecer e não posso fazer nada. Porque eu sou o erro.
Então vejo a luz que indica o fim do túnel e alívio inunda meu corpo. E quando a curiosidade sobre o que há ali se torna maior que qualquer outra coisa, acordo. Mas o medo e a ansiedade permanecem ali.
Levanto, escovo os dentes, tomo uma ducha quente e bebo meu café bem amargo tentado afastar o sonho. Não importa, nunca dá certo. Ele permanece ali. Sempre. E quando chego ao laboratório e faço todos os procedimentos que estão previstos para ser feitos, é nele que penso. Acho que estou enlouquecendo. Mas não estou. É só um sonho. Ou é isso que repito a mim mesmo todo dia.
E chega uma hora em que algo tem que acontecer. Porque não aguento mais sonhar. Não aguento. Então, quando acordei hoje decidi que seria diferente. Que talvez se a minha rotina acabasse o sonho fosse embora. Só talvez. E não fui trabalhar. Nem mesmo escovei os dentes ou tomei a ducha quente. Só um gole do café forte, ia precisar. Deixei o carro na garagem e peguei a moto que não usava há anos. E fui para a floresta. A mesma da minha infância, onde cresci em uma pequena casa de campo sozinho com minha mãe. E as sombras, elas também sempre estiveram ali, agora lembro.
O vento frio da manhã me trouxe as lembranças de volta. Como pude ter me esquecido? Eu sabia o que havia além daquele túnel, não houve momento em que não soubesse. Porque era real. Apesar de tudo o que me disseram era real. Tanto quanto eu ou a casa em que morava ou esta moto onde estou agora. E depois dos anos de terapia na infância e adolescência eles conseguiram me fazer esquecer. Mas não totalmente. Nunca se esquece de algo que muda sua vida por completo. Por mais que te digam que é apenas imaginação, a verdade permanece no lugar mais profundo do seu inconsciente.
E ali esta a casa. Tão calma e serena no seu lugar como só uma memória deveria estar. Abri a porta com chave já meio velha e enferrujada que até hoje guardei na gaveta das meias, talvez já esperando esse dia. Os móveis já não estavam ali. Foram levados na mudança, quando minha mãe decidiu que aquele lugar não fazia bem a mim. Era tudo tão menor do que me lembrava. E tão mais abandonado, nada parecido com algo que já foi meu lar. Decidi que subi até o meu antigo quarto só pioraria a sensação de vazio que tinha a casa agora. Sai. Havia outro lugar mais importante a visitar.
A floresta não era tão densa quando nos sonhos e os olhos que me espreitavam seria no máximo esquilos ou pequenos pássaros, nada assustador, aquela luz verde filtrada pelos galhos que te dava a plana sensação de você estava no paraíso, sem motivos para sair dali. Continuei caminhando, com meu coração batendo cada vez com mais força no peito e pensei que talvez ele não fosse suportar. Mas quando vi a luz, onde eu sempre acordava nos sonhos, tudo se acalmou. Os pássaros já não cantavam e os sons dos esquilos se tornaram insignificantes para mim. Nada mais importava, porque a resposta que esperei tanto tempo para ter estava ali, bem na minha frente, ao meu alcance para apanhá-la e viver o resto da minha vida como eu desejasse. Mas viver, pelo menos, ah, sim, viver.
Dei então o último passo, e estava ali, na minha frente, uma clareira. Uma simples clareira, sem nada de especial além da importância que dei a ela. Era essa a resposta que me atormentou, que me destruiu e sugou? Uma mera clareira? Eu não suportei, realmente não suportei. Não estava ali, como podia não estar ali? Porque na verdade não havia resposta para minha pergunta e toda tensão que senti até ali me foi demais e chorei. Chorei como a muito não fazia. Chorei as lágrimas que não vieram quando minha mãe morreu, ou quando minha mulher fora embora, graças ao sonho. Chorei e chorei e por um longo tempo pareceu que eu era a última pessoa viva do planeta, só naquela clareira, chorando. Foi então que cansei de chorar e dormi.
O sonho veio como sempre. O corredor de árvores escuro. Os olhos me observando nas sombras. O medo e a curiosidade. Mas desta vez quando avistei a luz que dava nessa clareira não acordei. Sai do túnel e me banhei na luz do sol, livre da claustrofobia que não notara que me atingia. E respirei o ar trazido pela brisa suave que me acariciava. Foi quando corri os olhos para admirar todo aquele espaço livre que a vi. Como por anos, sem saber, tanto esperei. Linda, não havia outra palavra que a descrevesse. Ou talvez houvesse, perigosa. Os cabelos rubros e selvagens levantando-se levemente com o vento, os olhos de um castanho profundo, quase inumanos, a pele branca, pálida, o corpo esguio de felino. Tudo nele me atraia, e amedrontava, como a luz no sonho, antes que eu soubesse o que significava.
Ela me olhava e eu a olhava. E como se tivesse ensaiado isso há anos, sorriu, com a boca de lábios cheios e dentes brancos, e falou meu nome num sussurro, e algo em mim se abriu, por reconheci aquela voz, mesmo tendo certeza de nunca a ter visto antes dali. Levemente, como um gato, veio até mim, e tive a certeza de que era a resposta e de que assim como a procurei por tanto tempo, ela me esperou.
Eu sorria, feliz por saber, feliz por tê-la encontrado e por estar ali. Quando chegou perto o suficiente, beijei-a, como nunca antes pensei beijar alguém. Desde então, não acordei.
M. R. Fernandes
Eu adoro isso de sonhos loucos.