Catrapum… O barulho ecoou na noite fria de Março. Depois, regressou o silêncio. Ao longe ouvia-se o mar, em suaves investidas contra o praial.
A Tia Ana Rosa desencostou a cabeça do travesseiro, mas não ouvia nada a não ser o ressonar ritmado e tranquilo do marido, ao seu lado.
- Domingos, oh Domingos, acorda homem.
- Ah… que foi?
- Tu não ouviste?
- O quê?
- Não ouviste o barulho?
- Não mulher. Deixa-me dormir, se calhar foi algum gato no telhado…
- Não foi nada. Foi cá dentro.
- Aqui na casa? – Duvidava o Domingos Verde.
- Sim, aqui na casa. Levanta-te e vai ver na sala e na cozinha. Se calhar foi o oratório que caiu na sala.
- Raios partam a minha sorte, logo agora que estava tão bem a dormir.
- Despacha-te!
O Domingos acendeu a vela que estava na mesinha de cabeceira, vestiu a samarra sobre a camiseta e as ceroulas, caminhou até à sala. Levantou a vela para melhor enxergar, não viu nada de anormal, o oratório estava no sítio, dirigiu-se para a cozinha, repetiu o movimento da vela e disse em voz alta.
- Não vejo nada de estranho.
- Vê lá a gaveta do dinheiro?
- Está na mesma.
A Tia Ana Rosa é que não se convencia e já se levantava para confirmar. Deitou a mão ao avental que estava pendurado na cabeceira da cama e teve um arrepio. A chave da gaveta, não estava no bolso do avental.
- Fomos roubados, Domingos.
Saiu do quarto direita ao móvel onde estava o oratório, que fazia de cómoda, com três gavetas logo a seguir ao tampo e dois gavetões por baixo, onde guardava a roupa da casa.
O tampo estava coberto por uma toalha alva, que caía para a frente, escondendo a fila das gavetas.
Levantou a toalha e no lugar da gaveta do meio, ficara o buraco negro onde ela deslizava.
- Tinhas razão, fomos roubados, mas como?
- E foram ao nosso quarto buscar a chave! – Dizia a Tia Ana Rosa – Foi o barulho da janela que eu ouvi.
As janelas eram de guilhotina e nunca estavam travadas. Acenderam o candeeiro de petróleo, foram observar a janela e descobriram, do lado de fora, um par de sapatos e pegadas frescas na areia macia da rua.
- Vai chamar ajuda, vai acordar os teus camaradas, temos de dar caça ao ladrão, senão estamos desgraçados. Lá se vai o apuro da semana.
A Tia Ana Rosa é que tomava nota das contas da companha, que recebia o dinheiro da venda, contas que eram partidas ao sábado. Parte do barco, parte do arrais, o Domingos e parte de cada pescador.
O Domingos sai de casa, munido dum sarrafo que encontrara na cozinha, nunca se sabe, até podia dar com o ladrão, ali por perto.
Em breve estavam à porta de casa vários homens, dispostos a dar caça ao gatuno que lhes surripiara o dinheiro. Ele já era tão pouco e havia de acontecer uma desgraça destas, logo esta semana, que as pescas até nem tinham sido más, dera muita pescada nas costas de Montedor.
Ao observarem os sapatos achados do lado de fora da janela, um dos homens exclama:
- Eu vi um tipo com estes sapatos. Não te lembras, João? O que esteve a jogar às cartas connosco, lá na loja.
- Pois foi, ele tinha uns sapatos assim, tinha.
Tinham estado com mais alguns pescadores da vizinhança a jogar às cartas, na loja da Chocalha, até tarde e esse fulano tinha acamaradado com eles, mas não o conheciam. Pensaram ser alguém de uma freguesia próxima, que estava ali a passar um bocado, a beber umas malgas de vinho, bom vinho que a Chocalha mandava vir de Outeiro.
Distribuíram-se em grupos e saíram ansiosos, na busca daquele desconhecido. A madrugada ia alta, ainda faltavam, pelo menos, duas horas para amanhecer.
Um dos grupos, foi directamente à loja da Chocalha, ali perto, onde mais tarde haviam de construir o quartel dos bombeiros, que naturalmente estava fechada e às escuras.
Continuaram para sul pela rua e ao chegar à alvariça, onde depois o Pinheiro construiu a oficina, hoje é a Caixa Geral de Depósitos, encontraram junto a umas silvas a gaveta desaparecida. Só faltava o dinheiro, os outros papeis tinham ficado.
De regresso a casa, decidiram que dois grupos iriam apanhar os primeiros comboios pelas sete da manhã, que se cruzavam na estação de Gontinhães e iriam até Caminha e até Afife ou Montedor.
Os que foram de comboio até Caminha, apuraram que já por lá tinha passado um indivíduo desconhecido e que andava descalço. Como o olharam com desconfiança, ele tinha desaparecido.
Decidiram entrar no próximo comboio e seguir para norte. Desanimados por ninguém o ter visto nas estações seguintes, decidiram sair em S. Pedro da Torre e esperar pelo comboio em sentido contrário, para os trazer de volta a casa.
Que grande surpresa tiveram ao entrar na carruagem, ao ver entre os passageiros o tal fulano, que tinha estado no dia anterior, na tasca da Chocalha. Sem denunciarem as suspeitas que tinham, entabularam facilmente conversa com o homem que já exibia uns sapatos e um casaco novo.
Ao chegarem à estação de Gontinhães, deitaram-lhe a mão e arrastaram-no para a gare, onde o imobilizaram, enquanto pediam para irem chamar a Guarda.
O homem confessou o roubo e a audácia de ir a uma casa desconhecida, às escuras, procurar uma chave, abrir a gaveta e sair furtivamente. O que estragou o golpe, foi ter as mãos ocupadas com a gaveta e a janela ter caído, sem contar. Por isso teve de correr e deixar no local os sapatos.
Esta história foi contada, muitos anos depois, pela Tia Ana Rosa, já velhota, quando se reuniam à noite os filhos, os netos e outros familiares ou vizinhos, para tecerem o linho ou para qualquer outro trabalho.
Sabem para que servia o fio de linho que elas teciam? Era para as redes do sável. Essas redes eram feitas em linho, não um linho qualquer, mas linho do Brasil, que vinha já seco em estrigas ou seja, em molhos de fibras com dois palmos de comprimento, que tinham de ser passados pelo sedeiro.
O sedeiro era um cepo de madeira com uma espécie de pregos virados para cima, onde se batiam as estrigas, para separar as fibras do linho que eram ligadas e fiadas, para de seguida irem para a dobadeira.
Depois de dobada, saía para as agulhas e só então se fabricavam as redes. Naquela época não havia material já fabricado, tudo era feito em casa.
As redes de que vos falo eram redes volantes de tresmalho com albitanas. Em linguagem corrente, quero dizer que eram redes que pescavam à superfície, tal como as lampreeiras e que se deslocavam ao sabor da corrente.
O que fazia flutuar a rede era a cortiçada feita em cortiça segundeira, nunca da virgem e o peso que a mantinha aberta e vertical, era feito com os pandulhos, uns pequenos e esguios sacos de pano cru, cheios de areia grossa, que se apanhava no Espilrro.
Também se apanhavam sáveis com redes de algerife, redes de cerco que eram puxadas para terra nos diversos portos do rio Minho. Os primeiros portos do Minho eram o das Oliveiras, o do Baixinho e da Candosa, já a meio caminho de Seixas. Estas redes eram fabricadas em fio do norte que era mais robusto que o linho.
Pois é, falam do sável, do arroz de debulho, mas não sabiam o trabalho que dava para o apanharem. Se calhar nem sabiam que haviam redes feitas de linho.
Isto foi-me contado pelo Domingos Verde, não o do conto, mas o seu neto, o Pinga, que ainda hoje recorda os serões de Inverno, que passava na casa dos seus pais, que recorda as histórias passadas no mar, os naufrágios, as misérias, as mortes, mas também a alegria das pescarias, da fartura, da sardinha, as histórias da vida.