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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
com que então a menina anda metida nas aftas. a vida da treta é dolorosa para quem como nós gosta de dar à língua a qualquer custo – escutamos então o mundo em silêncio – mas não te apoquentes. isso passa rápido e logo ficas novamente tagarela – quando era pequeno dizia que tinha “africas” na boca. talvez venha daí o meu primeiro abeiramento ao continente africano – adoro áfrica e o seu povo. o “selvagem”. o “virgem”. o “puro”. o das savanas. das florestas. dos rios com pirogas cortados a lanças plagiando anzóis – gosto das suas mulheres de seios nus. sentadas num almofariz de pedra gigante. catam cabeças da criançada parada num tempo sem números – nesta terra o dia acaba coma as árvores a engolir o céu como se fossem feijoeiros mágicos devorando um sol que nunca viu o mar. e os peixes vestem-se de rugidos ferozes. aterrorizando o escuro. e o silêncio quebrado pela fogueira a dançar rezas de um feiticeiro amamentado pelo leite de hiena – hoje. quero acreditar num deus que fez o mundo em setes dias. só hoje – estou a falar de homens bons. sem pecado. estou a falar de áfrica. do cheiro à terra queimada. da noite às cinco da tarde. do calor a deslizar pelo corpo em gotas pegajosa onde os mosquitos se amarram como se fossem aquelas fitas do antigamente que se penduravam nas portas das casas. dos leões. das gazelas. rinocerontes e toda a bicharada amiga do tarzan e da jane – gosto de áfrica. dos homens que usam uma tanga para tapar o que ninguém quer ver. gosto das velhas com as mamas a cair no umbigo e a rirem da cara de parvo do caixeiro viajante que lhes quer vender um soutien – lá estou eu a divagar. queria apenas dizer-vos que uma amiga tinha “africas” na língua – mas afinal o que são umas quantas “áfricas” na ponta da língua. nada. uma mesquinhez. umas minúsculas borbulhas excitadas com algum condimento mais apurado. afrodisíaco na construção excessiva de ditongos orais numa necessidade quase orgásmica para poder atingir o prazer supremo da comunicação – não basta falar com os olhos. não. não basta. e mesmo que as mãos pulem dos bolsos e se amarrem em abraços aos corpos que nos pedem socorro por um beijo que lhe diga: gostamo-nos – nenhum beijo substitui a palavra atirada de uma língua mesmo com aftas – sou louco. dizem – grave mesmo é se nos aparece um leão entre os dentes a correr atrás de uma gazela. e uns quantos canibais de ossos enrolados no cabelo. em gritos de fome a dizer: os restos da carne do almoço nos dentes é nossa – lá estou eu novamente a vaguear. a fantasiar tipo peter pan – por falar nisso. hoje comi peixe ao almoço será possível ter um canibal sentado no dente do siso de cana de pesca a lançar o anzol para a boca do estômago á procura de uma qualquer lombriga pré-histórica – não sei. talvez o remédio para estes meus devaneios cerebrais seja mesmo entregar-me a uma casa de saúde mental para finalmente descansar nas paredes brancas. curar-me penso eu – quartos brancos. janelas brancas protegidas por grades verdes esperança. paredes brancas. aparadeira branca. escondida numa mesinha de cabeceira também branca. chinelos brancos. pijama branco com o bolso bordado a letras douradas: casa de saúde dos aflitos. fundada em 1790 e inaugurada por sua excelência marquês do pombal. columbófilo. dono de vários pombais e outras excentricidades com aves de rapina – tudo branco. e um homem preso a um colete de forças negro feito por escravos embarcados na nau catrineta – e lá vem a nau catrineta anónima a navegar nas paredes do meu hospício. em ângulos de noventa graus. como se o mundo ainda tivesse um bom fim num dos cantos da minha imaginação – mas não. para a cada ângulo de visão uma recta com fim noutro ângulo – vejo tudo em ângulos que não sei dar nome. são ângulos meus. onde nas dobras faço acontecer sonhos estúpidos em histórias de coragem duvidosa. protegidas por roupagem branca lavada com omo – com omo toda a roupa e imaginação fica mais branca do que o branco – dentro destas casas brancas nenhum homem é culpado de nada. somos mesmo brancos dentro de olhos pretos – não sei onde estou. perdi-me. sei que estou a escrever uma missiva resposta a umas quantas “africas” no ponta da língua – quem me dera ter na ponta da língua agora umas respostas para todas as dúvidas brancas com que me embrulharam à nascença – talvez seja doença. talvez os diabetes em formação de ataque. excesso de doce. e as espadas empunhadas em gritos aflitos avisam o cérebro que está para breve o fim da lucidez e finalmente o triunfo do eterno sobre a vida terrena – no céu os anjos são brancos. tão brancos que até se confundem com as nuvens e todos os homens são transparentes. e os poemas a rimar com palavras que nunca foram usadas por poetas de olhos encovados de dor na procura das palavras certas. é preciso sobreviver para além do cabo da boa esperança. o fim do mundo – e as andorinhas brancas fazem ninhos de algodão nas mãos dos que querem escrever e não sabem. talvez um dia nasça uma capaz de voar para lá do que os homens sabem – não quero mais ter a cabeça no inferno. quero ir para o céu. para as nuvens que não vejo desde aquele dia em que me empurraram para o mundo cerebral – não quero cérebro. um homem sem cérebro não tem maldade e quando não há maldade não há lombrigas e sem lombrigas não há canibais a pescar e sem canibais não há leões. nem gazelas e muito menos carne no meio dos dentes e sem dentes não há mordeduras e as marcas não são nódoas. são beijos loucos nascidos para amar – eu gosto de amar. amo tudo. até o candeeiro da minha rua que fundiu por viver ao abandono de gente como eu – um dia pego num escadote e mudo-lhe a lâmpada. e depois talvez me enforque num filamento iluminado de esperança – e agora vou fazer o jantar. cabrito assado no forno com batata a murro. não gosto de cabrito. mas apetece-me dar uns murros – o mundo é cego e eu vivo dentro dele
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Não basta abrir a janela
para ver os campos e o rio.
Não é o bastante não ser cego
para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.
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Alberto Caeiro