A acção passa-se na década de cinquenta, em Vila Praia de Âncora, uma aldeia de pescadores do norte de Portugal. Este conto é baseado em acontecimentos reais.
O Porfírio encostou-se à parede e começou a tocar um tango na sua concertina. Era sábado à tarde, já tinham feito contas, as pescas eram poucas, mas sempre dava para o caldo.
Desde que chegara da Argentina, mesmo depois de casado com a Maria tinha por habito fazer-se acompanhar da concertina que trouxera das pampas. Não só tocava os viras minhotos, como se apaixonara pelos tangos de sabor ultramarino.
O Porfírio sabia que não demorava nada, para o povo se aproximar e dançar. Já era costume. Das ruas dos Pescadores e da 13 de Fevereiro, gente assomava às portas, as crianças corriam alvoroçadas em direcção ao músico. Com um acorde final, encolheu o fole da concertina, sorriu para a plateia e preparou um cigarro.
Da porta da loja do Anacleto, alguém o chamou, em voz alta.
- Porfírio, anda beber uma malga, para afinar essa garganta!
- Já lá vou, deixai-me primeiro tocar mais uma.
E recomeçou a tocar com a beata no canto da boca, a boina atirada para trás. Que saudades que tinha da Argentina, aquilo é que era uma terra! Curioso, quando lá trabalhava, tinha saudade da sua terra, Gontinhães onde deixara a namorada, onde estavam os amigos e os pais. Agora que tinha regressado, apertava-se o peito cada vez que pensava nas terras que deixara do outro lado do mar.
Lá tinham ficado os seus irmãos, o Justino, mais novo, quase uma criança e o mais velho, o Armindo que era como um pai para ele. Se tudo corresse bem, ainda havia de lá voltar. Trabalho não lhe faltaria, na serralharia do Armindo.
<br />Já se dançava no largo, a maior parte eram mulheres, que dançavam umas, com as outras, os homens ainda estavam pelas lojas a conversar e a beber. Aos poucos eles iam chegando. A ver se aparecia alguém que quisesse cantar ao desafio. Talvez mais logo, quando o vinho já fizesse sentir os seus efeitos.
- Oh Porfírio, toca a Laurindinha!
- Agora vou molhar a palavra, depois toco – aproxima-se da moça e diz-lhe em voz baixa – para ti, até toco o que tu quiseres.
- Olha para ele! Tem juízo, lembra-te da tua Maria!
Com uma gargalhada, pôs a concertina ao ombro e caminhou com passos largos para a loja, com o balcão cheio de homens a conversarem animadamente.
- Dai lugar ao tocador – diz um deles, desviando-se.
O Anacleto apresentou-lhe uma malga encardida, onde sobressaíam uns desenhos vistosos e verteu o líquido escuro, contido na caneca de riscas azuis.
- Este é do bom – explica o taberneiro – foi buscá-lo a Outeiro o meu irmão, a semana passada.
- É uma boa pinga, sim senhor – diz o Firola que estava ao lado.
- Vá, bebe a malga e toca uma modinha aqui para a gente.
- Oh Tio João, hoje não, só toco ali em baixo, senão tenho que aturar as mulheres. Vinde comigo, não há aqui ninguém para cantar ao desafio?
Perante o silêncio que se seguiu, desabafa:
- Parece que tendes medo!...
Saiu e logo se ouviu o som da concertina e os primeiros versos da Laurindinha, o bailarico estava para durar, iria até ao escurecer. Ora, tristezas não pagam dívidas!
Aquelas sessões de concertina eram habituais, assim como era costume, quando não estava no mar ou a tratar das redes, ir até à fonte tocar um bocado.
A fonte da rua das árvores juntava o povo das redondezas, era abastecida pela água que vinha do Rego do Forno e ao lado, as peixeiras usavam as bancas de granito para fazerem os seus negócios.
À noite, essas bancas serviam muitas vezes de cama à Maria Amélia “do Tostão Branco”, uma pedinte, sem eira nem beira, que nunca largava sua caixinha de rapé. Triste consolo.
Era aqui que o Porfírio gostava de tocar e de fazer “olhinhos” às raparigas solteiras e não só, como a Ciana, uma mulheraça morena, bonita, quase cigana, casada e com filhos pequenos, mas que, diziam alguns, permitia algumas liberdades pela calada da noite, quando o homem estava para o mar.
O Porfírio por várias vezes a tentou seduzir, com o olhar, com músicas e quadras apropriadas, chegou a mandar-lhe uns bilhetinhos, mas a Ciana sempre o rechaçara de mau modo.
“Está a fazer-se esquisita” pensava o Porfírio, sem perder a esperança.
Um dia, na loja da Tilde da Curraca, alguém falou no nome da Ciana e o Porfírio que já tinha um copo a mais, a língua destravada e a mente embotada, exclamou:
- Essa é muito fina, não lhe serve qualquer um!
Ninguém reparou no miúdo franzino, com uns quinze anos, que estava à porta a ver os homens a jogar as cartas, que silenciosamente se retirou.
Mais tarde, já homem feito, seria conhecido pelo “Fica Firme”, era irmão da Ciana e foi à procura dela que correu, para lhe contar o que ouvira na taberna.
Quando estava mais animado ou bebia de mais, o Porfírio costumava cantar umas quadras que tinha aprendido na Argentina e que falavam da liberdade, dos pobres e dos oprimidos, dos miseráveis que tinham de labutar de sol a sol, para ganhar uma côdea de pão.
Vários companheiros já o tinham avisado:
- Oh homem, não cantes essas coisas, um dia ainda tens problemas.
- Problemas, eu? Vós tendes é medo. A mim não há quem me cale, eu canto o que quiser.
Um dia, estava no café de cima, o café Central, do Ferraz, tinham-se juntado lá para merendar umas iscas de fígado e umas pataniscas, quando o Porfírio pegou na concertina e começou a tocar. Primeiro umas canções da nossa terra e depois aquelas quadras que ele tanto gostava e que os fregueses do Ferraz ouviam em silêncio.
De súbito, entram dois “praças” da GNR, a concertina cala-se, faz-se um silêncio opressivo.
- Você, acompanhe-nos ao posto – diz um deles, para o tocador.
- Eu, porquê?
- O nosso comandante quer falar consigo.
- Mas porquê?
- Não sei, nem me interessa, vamos, à nossa frente.
O Porfírio lá arrancou à frente dos guardas, com a concertina ao ombro. Chegado ao posto, ali a cinquenta metros, se tanto, na Rua 31 de Janeiro, pediram-lhe a identificação, tiraram-lhe o instrumento e meteram-no numa cela gradeada que havia nas traseiras.
No dia seguinte acordaram-no cedo, deram-lhe um gole de café e meia carcaça, mandaram-no ir à retrete e de seguida foi para o gabinete do comandante onde, alem deste, estavam mais dois tipos à civil.
- Então este é que é o tocador de concertina? Onde aprendeste a tocar?
- Foi na Argentina, quando estive a trabalhar.
- Hum, na Argentina, muito bemmm… Terra de comunistas… e de filhos da puta!
O outro civil vira-se para o comandante e diz-lhe:
- Nosso cabo, prepare os papéis que este “pássaro” vai connosco. Vamos pô-lo a cantar para nós, já que tanto gosta.
- Sim senhor, senhor inspector. É para já! – Responde de forma serviçal o comandante, que tinha a cara picadas das bexigas e fama de aplicar castigos corporais a quem lhe caísse nas mãos. Nunca saía do posto sem um “cavalo marinho” que batia negligentemente, mas de forma ostensiva, contra a bota de cano alto.
Na rua ninguém se atrevia a aproximar-se do posto, até porque, desde a noite anterior que um guarda passeava ininterruptamente entre a esquina do Portela e a travessa do Teatro, com a espingarda a tiracolo. Porque tinham prendido o Porfírio todos sabiam, não percebiam é como os guardas tinham aparecido assim, de repente. Talvez algum bufo que estivesse no café do Ferraz, ou alguém que ia a passar e ouvisse as quadras, sabe-se lá.
Quem seriam aqueles dois homens que tinham chegados ao posto, manhã cedo, naquele carro negro e aos quais o plantão tinha “batido a pala” em sentido, seriam da secreta?
Coitado do Porfírio, em que trabalhos estaria ele metido, por causa de umas canções sem importância.
A meio da manhã, saiu do posto agarrado por um braço e meteram-no rapidamente no carro, que esperava do outro lado da rua. No Porto, já na sede da PVDE, antecessora da PIDE, deram-lhe um prato de sopa e começaram-no a interrogar.
Queriam saber tudo, onde tinha estado, quem lhe ensinara a tocar, com quem tinha aprendido os versos, quem é que lhe pedira para os tocar e por ai fora. Perguntaram-lhe a mesma coisa vezes sem conta, durante tanto tempo, que perdeu a noção. Mantinham-no de pé em frente de uma secretária, com um candeeiro virado para si, onde estavam sentados dois tipos aos quais não distinguia as feições, um fazia as perguntas o outro tomava notas num papel.
Uma das vezes que cambaleou e se lhe dobraram as pernas, um dos polícias levantou-se pegou numa cana que estava encostada à parede e bateu-lhe nas pernas. Foi como um choque eléctrico.
De vez em quando revezavam-se, saíam uns, entravam outros; uma vez deixaram-no ir à retrete, deram-lhe um prato com arroz e carne, tudo frio e com mau aspecto. Mesmo assim engoliu algumas garfadas, já não comia há tanto tempo. “Que será feito da Maria e do bebé, espero que não os tenham incomodado, já basta a aflição de me saberem preso” pensava o Porfírio, angustiado pela sorte dos seus.
Regressado ao interrogatório, voltavam as mesmas perguntas, um dos polícias tinha puxado da pistola e brincava descuidadamente com o cano da arma virado para o detido. Não lhe tinham voltado a bater, mas várias vezes o ameaçaram, se não dissesse com quem falava do Partido Comunista. Já lhes tinha dito, vezes sem conta, que nem sequer sabia que partido era esse, nem para que servia, mas eles voltavam uma e outra vez ao mesmo.
“Se quiserem bater que batam, estou tão cansado que até nem me importo”; não deu pela entrada de outro polícia na sala, que lhe pegou num braço e o conduziu pelos corredores fora, até à escadaria íngreme.
No fundo, um pequeno átrio iluminado por uma lâmpada amarelada e outro guarda que abriu uma porta chapeada a metal. Passada a porta, seguia-se um corredor ainda pior iluminado para o qual abriam mais de uma dúzia de portas, talvez mais de vinte. Abriram-lhe uma delas, reparou que tinha o número 18 gravado junto à fechadura, foi empurrado sem violência e sentiu uma volta da chave e o correr de uma tranca.
“Então isto é que é estar preso”, olhou em volta, não havia nenhuma janela, distinguiu na penumbra, um catre de madeira com duas mantas e um balde a um canto. Estendeu-se lentamente, nem sentia as pernas, os socos pesavam-lhe nos pés inchados. Fechou os olhos, não conseguia pensar, a cabeça andava-lhe à roda com os acontecimentos. As lágrimas corriam em fio pela cara até às tábuas duras do catre, deixá-lo, ele não tinha feito nada de mal. Mais tarde ou mais cedo haviam de o pôr na rua, haviam de ficar convencidos que ele gostava de tocar e cantar, nada mais.
Horas depois foi novamente interrogado, sempre as mesmas questões, agora acusavam-no de ser o contacto de um tal Armando e queriam à viva força saber do Bento Gonçalves, do Pável e de Álvaro Cunhal.
“Quem serão?” – Pensava para si o Porfírio. Perguntavam também por uns espanhóis, que eles acusavam de trazer armas para os comunistas. Repetia sempre o mesmo, dizia-lhes a verdade, eles é que não acreditavam. Quando o interrogatório terminou, sabe-se lá depois de quantas horas, levaram-no por um corredor diferente, meteram-no numa cela onde estavam mais três homens. O mais velho, homem para uns sessenta anos, perguntou-lhe:
- Trataram-te mal, camarada? Há quantos dias estás aqui?
- Estou cansado, não me deixaram sentar, doem-me as pernas.
- Há quanto tempo estás a ser interrogado?
- Não sei, acho que começaram ontem ou anteontem, já não sei.
Os outros três entreolharam-se, não precisavam de falar para compreender que aquele desgraçado estivera, pelo menos, quatro ou cinco dias a ser interrogado impiedosamente.
Ajudaram-no a deitar-se num dos beliches, taparam-no com uma manta e recomendaram-lhe que dormisse. Em princípio, tão cedo não seria novamente interrogado. Eles já sabiam como os polícias se comportavam, já não era o primeiro contacto que tinham com aqueles torcionários.
Na Lagarteira nada se sabia do Porfírio, a única informação viera pelo tenente da capitania, que foi ao posto da GNR saber o porquê daquela inesperada prisão.
O comandante contou-lhe que fora uma mulher que ao ir para a missa vespertina, ouvira aqueles versos subversivos e fora informar a guarda, que tinha capturado o agitador em flagrante, tendo de seguida dado parte do acontecimento ao agente da PVDE de Caminha; este imediatamente oficiou para o Porto, de onde se deslocaram, no dia seguinte, dois agentes para custodiar o detido, a fim de ser interrogado convenientemente.
Claro que o tenente não contou estes pormenores todos à família, limitou-se a dizer:
- O Porfírio está no Porto a ser interrogado, se estiver inocente, não tarda a aparecer por aí. Tenham calma, que tudo se há-de arranjar.
Afinal acabou por estar preso quase três meses, ainda foi interrogado mais um par de vezes, chegaram a mostrar-lhe umas fotografias, mas ele não reconheceu ninguém. Quando chegou à terra vinha mais magro, tinha perdido mais de dez quilos, notava-se principalmente na cara e nos olhos tinha desaparecido aquela alegria, que todos lhe admiravam.
Durante muito tempo a concertina esteve calada, com o tempo voltou a tocar uns “viras” e uns tangos, sem o entusiasmo de outrora.
Anos mais tarde, veio a saber por um marinheiro da capitania, a quem o tenente confidenciara a verdade sobre a prisão do Porfírio, que a denunciante tinha sido a Ciana, como vingança do que ele dissera na taberna da Curraca.