Contos : 

Deixe Tocar.

 
Olga : - Dona Sara, o telefone está tocando.
Sara : - Deixe tocar.
Olga : - Mas dona Sara, se for algo importante?
Sara : - Na idade em que estou, não há mais nada de importante minha filha.
Olga : - Não fale assim, e se for o “seu Guilherme”?
Sara : - Deixe tocar.
Olga : - E se ele não ligar mais?
Sara : - Deixe que vá.
Dona Sara se levanta com as pernas bambas, apoiando-se em sua bengala e vai em direção a antiga vitrola. Escolhe o velho vinil de Edith Piaf e retorna a poltrona vermelha.
Sara : - Olga, faça um favor?
Olga: - Claro que sim, o que a senhora deseja?
Sara : Dance comigo?
Olga : - Pois não?
Sara : - Conceda-me essa dança, jovem bela?
Olga: - Mas eu não sei dançar dona Sara.
Sara : - Apenas deixe Piaf te controlar, deixe “ Non, Je Ne Regrette Rien” entrar.
Olga: - Mas e se a senhora cair?
Sara: - Você me levanta e muda de música, começamos de novo.
Olga: Tudo bem, a senhora é muito insistente e teimosa.
Olga pega calmamente Sara pelos braços, a abraça enquanto vai de um lado ao outro naquela pequena e antiga sala.
Sara : - Você sabes que, quando ele me pediu para dançar pela primeira vez, foi exatamente daquele jeito ?
Olga : De que jeito?
Sara : - “Conceda-me essa dança, jovem bela ?”
Olga: - E a senhora aceitou ?
Sara:- Obviamente que não, era o primeiro pedido. Só fui aceitar no terceiro.
Sara e Olga, riem enquanto rodopiam, tropeçando e esbarrando em alguns móveis, mas dançando como se tivessem em um salão de gala.
Olga:- Mas como você sabia que ele ia pedir novamente ?
Sara: - Eu não sabia minha filha. Quem desiste de uma dança, desiste de um amor de maneira rápida e traiçoeira.
Olga: - A senhora sempre soube de tudo não é?
Sara:- Minha mãe sabia, eu apenas aprendia. Minha mãe era uma verdadeira dama, uma que eu nunca fui e nem nunca serei.
Olga : - Você é uma dama Sara.
Sara: - Você me lembra Francisco.
Olga: - Quer que eu acenda um charuto também?
Olga sorri enquanto vê algumas lágrimas brotarem do rosto de Sara.
Olga: - Desculpe-me, não quis ser rude.
Sara: - Não foi, para ser sincera, eu gostaria sim.
Ambas, novamente, caiem na risada.
Olga: - A música parou.
Sara: - Apenas continue dançando, preciso dessa dança.
Olga: - Logo já está na hora do jantar e a senhora não anda comendo bem.
Sara: - Hoje não irei jantar aqui, irei sair e jantar fora.
Olga: - Vai sair com o “seu Guilherme”?
Sara: - Sou uma mulher de um único amor. Só temos um nessa vida, só somos suficiente para um amor. Já vivi o meu.
Olga: - Mas vá se divertir, apenas comer em algum lugar bonito.
Sara: - Não plante sementes que não poderás regar.
Olga: - A senhora sempre com uma bela resposta, te amo como uma neta.
Sara: - Você é minha neta, desde que Francisco te contratou, você foi a única que ficou. Mesmo com o salário atrasado.
Como de costume, elas riem e conversam de forma terna.
Olga: - Isso já deixou de ser meu trabalho dona Sara, você também é minha família agora.
Sara: - Quando eu morrer, fique com Piaf para você.
Olga: - Não diga uma coisa dessas.
Sara: - Apenas fique, você se lembrará. De mim, de agora.
Olga: O telefone está tocando, preciso atender.
Sara: - Deixe tocar.
Olga: - Mas e se for sua filha ?
Sara: - Estou abraçada em minha filha.
Olga: - Mas você não pode ser tão dura dona Sara.
Sara: - Se quisesse me ver, viria. Quer apenas um consolo para não vir, quer apenas ver se ainda estou viva ou se preciso de alguma mesada.
Olga: - Ela quer a mãe dela, sente falta.
Sara: - Minha mãe dizia para eu nunca ligar. O telefone afasta a companhia. Queres saber como estou ? Venha me visitar. Passava toda semana na casa dela, ela adorava. Eu achava uma perda de tempo, hoje choro querendo atravessar aquela porta e encontrar aquele chá amargo que eu tanto odiava, mas que me fazia bem. Minha filha, percebi muito tarde que as coisas que eu não gostava, eram as coisas que me faziam bem.
Olga: - A senhora quer um chá antes de dormir ?
Sara: - Tomarei chá hoje ...
Olga: - Você parece cansada, quer se deitar ?
Sara: -Posso pedir outro favor ?
Olga: Sempre.
Sara: Meu doce. Pegue aquele vestido rosa para mim ? Você sabe qual é.
Olga: Dona Sara, aquele que você me mostrou ? Aquele que você usou no primeiro jantar com Francisco?
Sara: Ele mesmo.
Olga: Irá usar ele para sair hoje ? Ele está tão velho.
Sara: Usarei ele mesmo, amo-o. Meu pai me deu depois de pescar quilos de peixe. Ele chegava fedendo como a morte, mas mesmo assim, eu o abraçava. Em meu aniversário de dezoito anos, ele me trouxe esse vestido. Usei durante uma semana inteira, até cheirar como meu pai.
Olga ri, se levanta e vai pegar o velho e amado vestido. Quando volta, Sara está deitada no sofá, com um olhar distante.
Olga: - Você não que ir para cama e desmarcar esse jantar ? Parece cansada.
Sara puxa o vestido da mão de Olga e o abraça.
Sara : - Ele ainda tem o mesmo cheiro.
Olga: - De peixe ?
Sara: - De amor.
Olga: Vamos dona Sara, eu levo seu jantar na cama. Com quem a senhora irá sair ? Eu ligo e desmarco.
Sara: - Não posso desmarcar.
Sara fecha os olhos e se aconchega no sofá. Agarrada no vestido, ela suspira.
Olga: - Mas quem é essa pessoa tão importante?
Sara: Minha filha vire o disco e coloque-o para tocar novamente?
Olga se levanta e obedece dona Sara, “Ne Me Quitte Pas” toma conta do lugar.
Olga: - Conte para mim, não confias mais em mim?
Sara: - Claro que confio.
Olga: - Então quem é?
Sara: Francisco.
Olga: - Não brinque assim.
Sara: Queria tanto brincar com você agora. Mas, tudo nessa vida chega ao fim minha menina. Segure minha mão, estou com medo.
Olga em lágrimas agarra a mão de Sara e implora:
Olga: Ne Me Quitte Pas.
Sara com um último suspiro responde:
Sara: Jamais.
A mão de Sara já não aperta, já está fria. Olga chora como se tivesse perdido sua mãe. O choro é cortado pelo tocar de telefone. Olga se levanta e atende:
Filha de Sara: - Mãe ? A senhora está bem?
Olga: - DEIXE TOCAR.

 
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BrunoPereiraGarcia
 
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Enviado por Tópico
Branca
Publicado: 30/01/2014 13:48  Atualizado: 30/01/2014 13:48
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Mensagens: 3024
 Re: Deixe Tocar.
Bruno, simplesmente amei.
Não consegui parar de ler, e vi a cena perfeitamente, como num belo filme.
Parabens.
Bj.
Branca