Conto
O Museu dos Sonhos
Ao entrar no museu o que me chamou a atenção foi uma caixa de um metal escuro, contendo um pequeno orifício. Olhei para dentro dela, e lá havia uma Quimera. A tal criatura sentia-se enclausurada, e eu ali parado, a compartilhar seu sofrimento. Notei que o tempo não tem distancia, apenas memória. Imaginei meu corpo a transpassar a pequena lamina de vidro que nos separávamos, e um outro mundo existia lá dentro.
Sua pele transpirava o tempo do passado no ar do presente retido nas paredes. Transportei-me em pensamentos lá para dentro,e dividia a respiração com o suor e o cheiro da fera.
Ela aproximou-se de mim, e suas pupilas verticalizadas, contrastavam com a iris clara de um gato siames. Não queria estar mais ali, por que o reflexo daquele olhar pertencia a um tempo que não era o meu. Um mundo mítico de medo, fantasias e dragões alados. Meu lugar era fora daquele universo fechado, e livre de arestas, a rabiscar seres imaginários, a criar figura sobre as constelações.
A fera queria conhecer o meu ser, e de repente lá estava eu dentro daquela criatura mofada pelo tempo e devoradora de marinheiros e semideuses, onde o medo do Tempo gerou incertezas, duvidas e mentiras de formas semi- humana.
Sai lá de dentro dela como um rebento de Quimera, que ora geravam feras, ora, heróis medievais a deixar cicatrizes profundas com suas espadas numa pele coberta de escamas, e mistérios.
Ao libertar minha mente da ilusão, um novo ar entrava em meus pulmões, e pude entender que a vida continua sem que seja questionada.
Um pouco mais a minha frente, deparei-me com um corredor escuro, sem saidas laterais. Havia apenas um pequeno facho de luz, que certamente levava ao seu final. Andei até aquele ponto, e pude ver mais corredores, não tão sombrios quanto aquele . Comecei a contar os passos sem notar a distância a diminuir pouco a pouco logo ali na frente. Dali em diante as paredes começavam a mudar de tons, as cores iam ficando mais fortes, iluminadas, avisando o fim de um longo trajeto. Foi quando me deparei, com as salas dos desejos. Neste lugar podia ver, sentir e tocar as formas do desejo. Eles são de puros cristais, e o fascínio de tê-los brilhar soltos entre as mãos, e também outros encrustados sobre as rochas como pequenos diamantes, atiçavam meus instintos de poder e delirio. Cristais multifacetados transportavam os reflexos da alma para os moinhos de ventos, repletos de ilusão. Tais desejos eram feitos da própria matéria viva, dura e fria como o gelo, que emanava seu brilho abstraído das encostas das geleiras em forma de diamantes, mas enquanto isso, via-se as caravelas da janela entreaberta de frente para o mar, a carregar nuvens como velas por onde os ventos sopravam através dos oceanos. Desejei a eternidade, e o brilho se desfez das mãos, das paredes e do chão. Em poucos segundos foi da eternidade ao efêmero, e a sala antes repleta de diamantes, agora haviam inúmeras borboletas monarcas voando ao meu redor, roçando suas asas frágeis sobre minha pele, e a sugar os desejos em flor, em plena primavera.
Dai, a sala escureceu, as borboletas partiram, e a flor agora é um fruto vermelho de forma esférica sobre uma mesa de Cezzane.
Repentinamente passei para outro cenário, numa sala repleta de arquivos, onde as pilhas de documentos eram alta demais, dava até vertigem só em pensar em subir até a última gaveta onde se encontrava o livro da minha vida. Tomei uma escada-elevador onde me levava ao ultimo patamar. A sensação era de estar numa estrada vertical indo em direção a montanha , de ar rarefeito. Senti o vento ao tocar as finas folhas das eternas sequoias.
De uma hora para outra a escada-elevador parou, e bem a minha frente estava o livro da minha vida, mas tive medo de abrir por que todo livro tem uma ultima página e fim. Simplesmente não tive receio de ler o que havia dentro dele. Se fui covarde, ou se fui prudente, na verdade não sei. Tive medo de saber sobre minha morte, e para onde vão todas as ilusões
No museu dos sonhos entrei num barco, naveguei em direção ao passado.
O brilho daquelas águas, carregava os viço do olhar e o gosto do sal. Do azul do mar profundo os sentimentos mergulhados eram arrastados através das redes dos pescadores, e furtivamente apanhados por um pelicano. A luz que iluminava minh’alma me levou ate as dunas sagradas do colo duma mulher, e ali adormeci.
Ao nascer do dia, acordei na sala das orações, onde a luz do sol seduzia de uma forma fria, os vitrais, a deixar a escapar, os desejos mortais sobre a nave da catedral.
Todo prazer é belo e cheio de pecado, mas numa oração peço que deem olhos para a alma e asas para o corpo, e que possam voar bem lá no alto acima das torres góticas.
Pedi ao vento para ouvir o barulho gelado das águas descendo as cachoeiras indo em direção aos jardins das gárgulas. Implorei ao Tempo, que deixasse a alma viver sem seu corpo. Pedi também, que a vida continue a navegar com a alma leve, para que o vento a erga além das torres dos castelos medievais, além dos penhascos da Irlanda, ou do voou das aves exóticas do novo mundo.
Ah, sim! Haviam também pessoas no museu dos sonhos, mas das poucas que pude observar, tratava-se duma mulher em especial, feita de números fracionados, que ao andar projetava linhas, ângulos e curvas repletas de equações e formulas, de uma silhueta de mediadas áureas, a compor um universo perfeito, porém estava triste porque antes de fatiar a maçã, esta já lhe mostrara todas as probabilidades e respostas de como descascá-la, antes da mordida, e o que ela mais queria era uma equação para obter o imprevisível, algo que a surpreendesse. Olhou para mim, e sem dizer nada, sorriu e partiu. Por onde a mulher caminhava, o rastro deixado pelas paralelas de suas pegadas atravessavam os limites das dimensões indo em direção ao mundo das esferas.
Continuei meu caminho, sem olhar para traz, mas não pude evitar o temor que havia na minha frente: a sala da origem do ser humano. Deparei-me com o primeiro homem que pisou na terra com seus pés descalços, senti seu estranho contato com a mãe natureza, e a curiosidade do seu olhar, de fome de tecnologia que ainda crua iria acender a primeira faísca, pra depois inventar a primeira chaminé.
Essa seria a evolução de minha especie, que me acumularia de livros, pra depois queimar todos em praça pública. Vi que o homem seria o maior inimigo da evolução da sua próprio espécie, e a perfeita forma da maçã iria contradizer as leis de Newton, através da mentira; nasceria assim, as palavras na boca dos políticos. Muitas vezes duvidei de que tal evolução existiria. Bastaria colocar este homem nu diante do nada, para observar se algo seria criado através do nada. Será que os desejos criaram a maçã?
Desde que aja luz, tudo se ilumina, mas é da escuridão que se alimentam os mistérios, as formas imaginárias, os temores, as incertezas... A luz apenas revela os desejos em forma de matéria, e surge da penumbra a fusão do fio da razão com o manto da emoção, pertencente ao universo do devaneio humano.
O que mais poderia surgir a minha frente naquele museu insólito?
Seria o homem, o próprio criador do homem? Tal resposta virá do futuro, em forma de uma ciranda de roda, em que não há primeiro e nem último ao formar um circulo, e o que vi no passado foi apenas uma roda que se abriu para o mundo das caravelas, onde os protagonistas seriam as ilusões levadas ao vento para unir os continentes, e o velho se encontraria com o novo, e a vida nada mais é doque uma viagem num barco solitário.
Estava bem ali a resposta para a mulher vestida pela ciência que desejava conhecer o imprevisível, mas é uma pena que ela se foi, caso contrário saberia que a resposta ao seu questionamento, deveria romper o círculo da razão e partir para uma jornada errante cheia de acasos e desventuras. Descobriria que ao longo da vida, a reta pode ser o caminho mais curto, mas com certeza não o mais interessante, e nem ao menos, o mais apaixonante.
Mais adiante entrei numa sala repleta de livros, e onde havia uma imensa placa na parede com os dizeres: Proibido ler.
Apenas olhá-los nas prateleiras, não iria me satisfazer em nada. Sem pensar muito peguei um em minhas mãos,e comecei a ler, sem a preocupação com a escolha, ou com a placa de advertência. Todos possuíam capas negras. Comecei a folhear páginas, e páginas em branco, quando de repente apareceu um título: “O Jardim do Éden”, e logo abaixo em letras miúdas estava escrito: “O homem jamais foi expulso do paraíso, porque nunca esteve lá”. Fique surpreso diante de tal revelação, mas antes de tornar a próxima pagina, pensei, na razão pela qual alguém escreveria tal frase, contradizendo o que nos foi passado sobre a história da criação. Estava um tanto apreensivo, serrei os lábios e virei a página seguinte, onde encontrei a explicação para tal afirmação: Esse episódio é uma referência ao futuro, e por enquanto nenhum homem conquistou o paraíso, e na verdade não será o primeiro, mas sim o último de sua especie a conquistar o jardim do Éden
Logo pensei então que a história do mundo deveria começar com o inferno de Dante, onde todos se debruçam sobre os outros para sair daquele mundo escaldante, mas o que acabam fazendo é se debaterem, e se afundarem cada vez mais, como em areias movediças.
Assim fica mais fácil afirmar que, o que aprendemos está mais voltado a nos aprisionar, do que nos libertar. O elo que torna forte e seguro, se faz ao mesmo tempo prisioneiro de um mundo estereotipado.
Aquela altura, estava a um passo de penetrar na sala das profecias, erguidas por enormes colunas douradas do templo de Dário, que sustentavam um céu repleto de estrelas, criando um cenário bordado sobre uma cortina de fundo plana por onde navegam toda a luz das estrelas na distância ilusória da tridimensionalidade nas mentes humanas.
As profecias, eram formadas por pálidas senhoras da noite que vestiam-se com túnicas pretas, e saiam por de trás das colunas carregando em suas mãos o ouro de Finisterrae. Estes eram derretidos dentro dum caldeirão incandescente por onde a porção mágica girava, borbulhava e ardia. O vórtice separava o caldo do fundo, e formava-se toda luz e a matéria primordial A profecia se revelava através da fusão do ouro com a escuridão. Vozes surgiam de todos os lugares, oriundas da consciência dos mundos subterrâneos. O caldo que ali se formava, era entornado em cadinhos, e enterrados por diversas partes do mundo, desde o Alasca até Madagascar. Dali sairia uma voz, revelando o destino aos humanos, avisando-os que as decisões já foram tomadas tanto no passado como no futuro. Nada irá ser alterado. Seria uma afronta contra as senhoras de túnicas negras, se aquilo que elas tanto guardavam fossem entregues ao acaso, a um simples e tolo capricho dum mortal.
Em cada frasco, a transparente lamina que dividia os meios, mostravam ao homen, de que sua magnitude jamais irá se redimir, aos caprichos humanos. Tentarão intervir, assim como o fez sobre o ar, terra e mar, e por onde passar desapercebido de sua pequinês diante da infinita grandeza do cosmos.
Com certeza a humanidade deixará suas marcas, nos registros do Tempo, mas sua maior obra virá não por suas construções gigantescas, de que tanto se orgulha. Irão construir naves, para mostrar seus feitos aqui na Terra, admiradas da Lua e até de outros planetas. Sua vaidade não terá limites, mas sua marca maior virá dos dramas tatuados em sua alma. Saudades deixadas na memória das paredes dos castelos medievais, seus sonhos, suas paixões e desejos. Sua alma estará para sempre sendo contada pelas memórias do Tempo.
Airton Parra Sobreira
Conto e imagem de autoria de Airton P. Sobreira