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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
não é escritor
quem quer
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escrevo prosa. não sei escrever poesia – escrevo prosa porque gosto de falar com pessoas. imagino-as a escutar o que escrevo. acenando a cabeça para cima e para baixo. a dizerem sim. sim de compreenderem o que as palavras não sabem dizer – as palavras nunca dizem tudo – quando escrevo falo muito. sempre mais do que o necessário – sou assim. o corpo pede e as palavras aparecem. acontecem – tenho muito medo de dizer pouco. escrevo. escrevo. e o medo a fazer eco: estás a falar muito. estás a falar muito. estás a falar muito. e centenas de ouvidos nas palmas das mãos em agonia – escrevo. escrevo mais. mais. resisto com palavras guardadas num pavor-silêncio. meu – e se não me compreendem? escrevo. escrevo como se me poisassem andorinhas numas mãos disfarçadas de cabos de alta tensão. sacodem a penugem como eu sacudo letras – para elas não há inverno. cantam primavera em dias de chuva molha tolos. esperança – sou tolo por gostar de escrever? não sei. palavra de honra que não sei. possivelmente sou – talvez a minha tolice derive de um conflito existencial: um corpo dividido em dois – de um lado o destino. do outro a fé de que todos os caminhos vão dar a roma – não é verdade. há caminhos para o nada. para um fim do mundo que nunca se alcança – haverá castigo pior do que saber que metade do corpo não descobre a sua outra metade cuidada? – não há – punição que não merece nenhuma das metades – talvez um dia alguém diga que a verdadeira obra de arte nasce da comparação entre belo e o monstro. talvez – aceitação. as metades olham-se em compaixão e as palavras lutam com a imobilidade do corpo. nada acontece às mãos – ali fico. estático. de olhos parados no nada. a gozar a antecâmara da morte num silêncio interior inimaginável – o que de mim resta guarda-me a música tocada com acordes de notas graves com arranjos de desilusão – só escrevo com música. é uma questão de ritmo. dizem que são feitos de fórmulas matemáticas. talvez seja esta a única ocasião de me encontrar com a lógica – às vezes não encontro nenhuma fórmula capaz de me atirar ao futuro. nem uma insignificante regra de três simples. triste – tenho tantos dias onde não existo. com tudo a permanecer no escuro. com tanta coisa sem nome. e o coração a bater ao ritmo de uma porta açoitada por vento tirano – um dia destes apunhalo-me com uma qualquer palavra ordinária – estou cansado. os dias estão mais rápidos e a mobilidade mais difícil. estou a ficar com as costas tombadas cada vez mais para a terra – os invernos chamam cuidados. estou frio. sempre que escrevo fico enregelado. e os brônquios a chiar. pingo no nariz e eu sem o lenço da mão – o pingo suspenso. fungo. escrevo. fungo. escrevo – escrevo. hoje tenho um adjetivo qualificativo importante para rabiscar: a minha escrita é uma palhaçada – e também um superlativo absoluto sintético: sinto-me sapientíssimo quando escrevo – contradição lunática. fungo – confesso que por cada dia de escrita o medo duplica e o desespero multiplica-se numa equação de resultado infinito – quem sabe hoje é o meu dia da sorte e as palavras fazem uma primavera-abril sem águas mil – gracejo levemente. como se fosse uma daquelas pinceladas minúsculas de van gogh. colho o ramo de flores da sua jarra. girassóis brancos. ao meu olhar. ato-o com dois verbos fortes: sou o que fui – escrevo. aligeiro mais duas linhas ao pensamento. se soubesse escrever com arte talvez o livro da minha vida estivesse no último capítulo. não sei – trago nas mãos palavras que não são minhas. ouvi algumas. li outras. senti muitas mais. e sem saber qual das partes do corpo resiste à incerteza. entre silêncios da noite. encontro outras que não sou capaz de descrever. quer dizer. escrever – destino – paz à sua alma e luto eterno para um homem que nunca deixou de ser órfão – crueldade. ninguém deveria nascer com o destino traçado – depois de morto não me roubem palavras da boca. peço – enfrento o que sou com o que fui. toco-me. e parto ao futuro navegando à bolina numa agitação norte que nunca parou de anunciar desordem – agora. agora faço estas páginas de palavras para espalhar no mundo dos justos. há tantos. basta procurá-los nos morais da modernidade – todos temos que ser qualquer coisa – o que sou eu quando não sou o que sou por obrigação? – talvez um carpinteiro* de palavras. operário de palavras. soletradas por uma boca putrificada por uma inquietude autobiográfica
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– onde é que já ouvi isto –
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passo tanto tempo a ouvir-me. e o corpo a dizer: desiste. desiste. o destino está traçado – nunca compreendi a motivação dos órgãos para não se suicidarem – não me compreendo – talvez a palavra compreender não seja a mais correta para definir esta coisa de querer dizer o que não pode ser dito por quem gosta de falar – não sei escrever. não sei falar. não sei ler o futuro. vivo no meu silêncio de barulho. sobrevivo – escrevo então com este barulho dos dedos a bater nas teclas. dou-lhe com força para fingir que não estou apenas na companhia de um silêncio silêncio e ganho coragem para escrever a palavra “graal”: aceito-me – aceito-me assenta melhor num corpo dividido – aceito-me. gosto da palavra. alivia uma dor que gosto de negar aos que me tentam fazer acreditar na soma das partes – sei que existo porque me obrigo a escrever – aceito-me. esta é a palavra mais-que-perfeita. a palavra de quem escreve para implorar compaixão a uma dor que nunca sei onde doía – escrevo prosa porque gosto de falar
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[*] – antónio lobo antunes -