Ver-te assim derrotada pelos anos, depois de tanta vida que se eclipsou e que não passa de cotão na memória, que o esquecimento em vagas vai levando. Vida de obstáculos, mas com muito amor insano, de mãos e pernas que correram para ti, agora nada queres a não ser o armário dos remédios. Sozinha, vais esgravatando fotos e cartas, paisagens de outrora coladas a saliva que secou. Casa recheada de lixo acumulado, queres agarrar em tudo e não consegues agarrar em nada, guardas-te, mas perdes-te o brilho dos olhos caminhando por ruas estranhas com estranhas pessoas, ouvindo ao longe um solo de trompete dolente e cansado. Dormir, dormir, dormir, sem amarras, caminhar, caminhar, caminhar, sem pensar e podes morrer a qualquer hora, cantando mais alto que o vento. És infeliz, mas não podes ser cruel. Estonteantes memórias de corpos amados, na cama agora árida e fria. Não há chegada, nem partida, que se possa prever, nos corredores dos azulejos brancos. Não chega nenhum comboio à estação, ninguém vem e tu esperas para ir. Voltas a caminhar, entretendo a espera, caminhar sem pensar, um pé perseguindo o outro na cidade nocturna, espantosamente pejada de luzes que tremem, na água do rio. Longe do conforto de uma cama com vida, que naufragou no abandono. Carregas a mala do passado. Tomas um café escaldante na esplanada… o comboio vai chegar.