O olhar castanho fitou-me atento. Gania impaciente, junto ás minhas pernas, apoiado sobre as patas traseiras. Abri a porta de saída e acompanhei Nanook até o quintal. Passei as mãos pelo rosto e senti a pele áspera da barba por fazer. Bebera uma xícara de café, comera duas frutas, mas sentia o estomago pesado. As janelas do quarto de Paula permaneciam fechadas. Seu casaco de lã pendia da cadeira de balanço, no pequeno terraço. O mato ocupava todo o quintal e o jardim próximo ao portão.
As arvores que circundavam a casa tinham quase a minha idade. Meu pai as plantara quando eu começara a andar, aos dez meses de vida .
Lembrei das fotos emolduradas, na sala de jantar. Mostravam a construção da casa e a plantação das mudas pelo meu pai. Manhãs ensolaradas. As plantas seguras por minha mãe e ele agachado, concluindo as covas onde virariam árvores. O cigarro pendente do lábio inferior. Dedos escuros de terra e nicotina, em preto e branco. Numa das fotos, exibia uma muda á frente da câmera. A imagem de minha mãe, contra o sol, segurando a Kodak, gravada nos óculos do meu pai. Muitas fotos de parentes e amigos, em visita ao sítio.
Numa outra, amparado por minha mãe, eu olhava curioso o chapéu safári do meu pai. Estava agachado, as mãos cheias de capim. As serras ao longe, completavam um quadro estival. Eram jovens, casados há dois anos. Pareciam felizes apenas por estar ali, fazendo o que mais gostavam naquele tempo.
Hoje, as árvores abraçavam o chalé, como planejaram. As folhas mortas formavam um tapete sobre o chão. Chovera. Uma lufada de ar frio encheu - me os pulmões. Senti um bem estar, breve e repousante. Um agosto menos frio era esperado .
Caminhei ao redor da casa. Acionei a alavanca da bomba d’água manual, que sabia não mais funcionar. Eu mesmo obstruíra o poço, dois anos antes, após descobrir que a água acabara. Mas a alavanca estava ali e me pedia um empuxo, um empurrão. O oitizeiro crescia ao lado da garagem. O balanço pendia da jaqueira. Cordas apodrecidas, tábuas escuras e rachadas. Júlia e Marcos pouco vieram aqui, depois de adultos. Preferiam os amigos e as famílias dos amigos e parentes, vindos dos seus casamentos. Outras casas. Nanook me acompanhava, andando lentamente, em passo desordenado. Ofereci - lhe um pouco d’água , desprezada num ganido breve e irritadiço.
Acompanhou-me quando abri a porta do galinheiro vazio e peguei a pá, no cocho de ração dos pintos. Segurei-a, sentindo o cabo nodoso e firme, ainda com as marcas feitas pelas crianças, quando vinham ajudar em troca de andar a cavalo a tarde inteira , na serra da Sapucaia.
E foram muitos passeios: muitos riscos, muitas marcas, caras sorridentes e zangadas, enfileiradas, ao longo do cabo, até a junção com a folha da pá. Feitas com um canivete suíço que fora de meu pai.
Vi uma fruta- pão caída ao pé da cerca divisória, entre as folhagens. Lembrei do gosto de Paula pela fruta-pão, mas preferi deixá-lo onde estava. Acendi um cigarro, ao chegar à porteira. As mãos, trêmulas. A marca ao redor do anular esquerdo era clara e bem definida. Ás vezes esfrego o dedo, como se o anel ainda estivesse nele.Coloquei os óculos escuros, sentindo as patas de Nanook rente ás minhas pernas.Fumei o cigarro quase até a metade, olhando a autopista que serpenteava ao longe .Os carros começavam a concentrar-se, no engarrafamento das sextas-feiras.
Retornei, fui até a garagem. Abri o carro, peguei o smith&wesson no porta-luvas. Conferi a carga, coloquei-o no bolso da jaqueta e sentei no banco de pedra sob a amendoeira. O cão apoiou-se sobre as patas traseiras e me encarou, num olhar cansado e distraído . O focinho disforme e ulcerado, me fez lembrar um velho filme da TV. Levantou e aproximou – se de mim, trôpego e hesitante.
Afaguei-lhe o dorso . Atirei na cabeça de Nanook, que gemeu e tombou junto á tigela d’água. Levantei-me, coloquei-o num saco de aniagem e sepultei-o sob o velho jambeiro, na entrada da mata. Voltei para casa. Abri o portão, cabisbaixo e sentindo um frio estranho ,aderido aos ossos.
Levantei a gola da jaqueta e entrei. Paula bebia café, enquanto folheava uma revista.
Tinha as mãos trêmulas e os olhos avermelhados.
—Fui acordada pelo tiro. Foi rápido? Ele chegou a sofrer?
— Bem menos que nós. Já está enterrado. Júlia e Marcos devem querer a foto de Nanook na primeira semana de vida. Claro, se você não se opuser. Ele morreu após a divisão patrimonial e o retrato é seu.
— Ele viveu muito. O equivalente a setenta anos , segundo o veterinário.
— A vida também perde o sentido, até para os cachorros com câncer.
Ela abriu a boca, mas não chegou a responder-me. Levantou-se da mesa, acendeu um cigarro e tomou a direção do quintal.
Deitei na rede e fiquei contemplando as vigas do telhado, durante muito tempo. Dormi, até as buzinas estridentes e os motores acelerados, lembrarem que já era noite, desde muito tempo.
andrealbuquerque