Uma bota gessada de cinqüenta dias de idade, coberta de desenhos, frases, riscos e rabiscos do neto, outros parentes e aderentes. O conhecido padrão da teoria do caos. No dorso do pé, o homem de ferro enfrentava um agressor extraterrestre. No meio da canela, uma caveira com a inscrição GOPE disposta em colarinho. Na parte externa da perna, pendia a língua carnuda de um Rolling Stone.
Rivaldo coçava a perna avariada com um cabo de mata-moscas, acompanhando Bruno, numa reprise televisiva com Eddie Murphy. Mais velha que o neto de nove anos, que ria daquilo tudo, pela zilionésima vez
Olhava no meticuloso trabalho da nora - sim, para ele nora, para o filho, simplesmente a ex. Problema ou solução deles.
A sua Amarílis há muito partira deste mundo. Melhor para ela. Cecília recolhia tapete do quarto com auxílio da diarista. O carpinteiro fixava uma barra metálica no banheiro próximo do seu quarto. Quatro marcas na parede do corredor indicavam a iminente instalação de mais duas – não é o que mata velho mesmo?Caganeira e queda, não necessariamente nessa ordem, filosofou resignado.
Sobre a mesa, despontava do embrulho uma luminária. Cor de pêssego para a nora, para ele, cor de erisipela brava: uma sentinela para o seu sono já encurtado.
A nora, simpática:
— Apenas prevenção contra quedas noturnas, seu Rivaldo.
Coçava as costas, com o mata-moscas. Enviava á nora, o seu melhor sorriso aparvalhado. Não deixava de ver naquilo tudo , uma compensação idiota para um descaso já indolor pela idade . Ele, Cecília e Bruno.Uma família ? Quem sabe ? Seu filho mais velho, jogou tudo pro alto: casamento, emprego bom , cidade grande e foi plantar uva nas margens do São Francisco .
De usura, deu três meses para o retorno do marido pródigo, mas as coisas deram certo. Vez por outra, uma caixa de uva, com rótulo em tres idiomas. Mimo para o velho pai.
Sorriu enquanto olhava as radiografias, contra o sol na janela: uma canela rachada deu naquilo tudo. Imagina se quebra o fêmur? Estava ali, uma rachadura no meio do caminho. No meio da perna tinha uma rachadura aos oitenta bem vividos.
Aturado por falta de opção, diziam o sorriso amarelo e o andar rebolante da mãe do seu neto. Isso mesmo.
Oito dias depois: sem bota, estranhava a brancura da perna. Não parecia não fazer parte dele.
Bruno em casa, as férias definhando. Os dias embaralhavam-se no tédio, feito o carteado sebento com que ás vezes divertia o neto. Numa das tardes de janeiro, perguntou-lhe direto , as palavras pulando da cabeça para a boca :
— Bruno, vamos visitar teu pai, lá perto da Bahia?
— Vamos. Nunca mais vi meu pai. Nessas férias não fui pra lugar nenhum.
Dedo nos lábios, fechado o pacto de o silêncio. Apontou na garagem, a motocicleta deixada pelo filho.
O resto da antiga vida no bagageiro: dois capacetes, um par de luvas, num saco plástico transparente. A moto escura, debaixo de poeira tão antiga quanto a fratura da perna.
Na manhã seguinte, comprou gasolina que escondeu na garagem. Lavou, limpou,regulou a moto.Ligou a serra elétrica e fingiu trabalhos de carpintaria. Uma semana de preparativos
Madrugada da sexta-feira: ambos de casaco e capacete. Abriram as portas da garagem, empurraram o cavalo de aço uns bons cinqüenta metros. Acomodou Bruno na traseira, ligou o motor,quicou a partida e arremeteu , contra o vento seco de janeiro .
Após algumas ruas, o acesso á BR. A cem por hora, sentindo o vento forte contra o corpo. O conjunto, uma vela enfunada sobre o asfalto. Logo, a aridez da paisagem alternava-se com áreas verdejantes. Viram cavalos e bois raquíticos, parecendo a caminho do fim do mundo, em marcha desolada.
Após de uma longa reta, surgem as primeiras algarobeiras. Rivaldo grita para o neto que aquelas árvores são tipo camelos de vegetação, crescendo no calor, quase sem água.
O garoto escuta de olhos arregalados , grita e gargalha , imaginando um camelo com quatro galhos ao invés de pernas. Parada para o almoço .
Sob um trapiazéiro, viram um bode amarrado, conduzido por um homem pequeno e grisalho, rosto enrugado e cara de poucos amigos. Preocupava-se com o ajuste da corda no pescoço do bicho. Praguejava em voz alta, mas as pessoas em torno não lhe davam atenção. Estavam todos bebendo,debaixo da árvore, no abrigo da sombra.
O velho levava um porrete na mão, que lembrava um taco de beisebol. Tinha olhos negros e pequenos, por onde vazava um olhar desconfiado. Um bigodinho fino, escorria-lhe feito água, pelos cantos da boca.. Usava um chapéu velho, preto, de plástico, esburacado e sujo, puxado sobre a testa. Chamavam-no de Custódio. O bode não lhe obedecia. A cada puxão da corda, o animal afastava as patas. Firmava-se no seu canto. Custódio puxava-o com mais força, até o bicho deslizar de lado, no chão empoeirado.
O velho vibrou uma cacetada na cabeça do animal, que caiu com o focinho voltado para cima. Olhos de bola de gude, escancarados para o mundo, refletindo o céu e a sombra do trapiazeiro.
Bruno sentiu vontade de vomitar. As pessoas ao redor continuavam comendo, bebendo cerveja e conversando animadas, falando das suas vidas e do calor que fazia naquela manhã. Reparou que comiam a carne de outro bode, que tivera o couro estendido ao sol, sobre uma cerca de arame farpado, próxima da árvore. Custódio prendeu o bode pelas patas traseiras e amarrou-o num galho alto da árvore.
Sacou uma faca comprida e gasta da cintura, iniciando a abertura do corpo de baixo para cima, a partir da barriga.
A destreza no manejo da faca impressionava o garoto, que já se esforçava menos para dominar o vômito. Durante a retirada das vísceras, a náusea retornou. Bruno afastou-se do grupo. Vomitou, antes de atingir a porta do sanitário, que tinha W.C. pintados com óleo queimado.
Sentia-se aliviado, mas não conseguia parar de olhar a cena, Custódio a descarnar o animal. Lavou o rosto e as mãos na torneira. Imaginava quantos animais Custódio já teria matado e que matar bode ali era só meio de vida e desculpa para virar uma cachaça. Continuavam comendo, tranquilos e animados, sob a árvore.
Imaginou outras formas de matar o animal sem aquela porretada na cabeça.
O barulho da moto interrompeu-lhe os pensamentos. Correu e sentou na garupa. Riu do avô, pela falta de jeito em dar a partida, medroso de machucar a perna sarada. Rivaldo percebera o seu mal estar e resolveram almoçar em outro local. Retomaram a estrada com o sol já declinante.
A aceleração regular da motocicleta trazia uma paz que parecia enrolada no vento. As pequenas cidades iam-se emendando, tal um rosário de beato. A tarde findava. O sol, um tição no céu avermelhado, saía de fininho, pelo horizonte.
andrealbuquerque