Nessa noite Pedro debatia-se contra a cama, mexia-se como um louco, serpenteava como uma cobra entre os lençois, as paredes do quarto eram de um azul tão sujo que mais parecia um cinzento quase negro, as grades da cama cheias de ferrugem onde ainda se notava um amarelo quualquer que um dia havia sido um branco. As mãos do Pedro agarravam os lençois com tamanha violência que quase os rasgavam, no mesmo beliche dormia sossegado um velho sábio, era gordo, costumava demorar pelo menos dez minutos a descer do beliche, nunca mencionara o motivo que o levara até ali e se alguém tocava nesse assunto conhecia a raiva que habitava aquele coração magoado. Pedro sempre acreditara que ainda havia gente a habitar o corpo do seu companheiro no entanto todos o acautelavam para o perigo que era viver a seu lado.
Quando Pedro acordou, sério como a noite, branco como a cal, assustado, o seu companheiro ainda ressonava a velha melodia dos que dormem bem, num impulso Pedro levantou-se, alcançou o lavatório e ficou a ver a noite passar enquanto se olhava do outro lado do espelho, do outro lado do mundo, a culpa caía em cima de si como um raio descontrolado saído das mãos do Deus de quem crê, há muito tempo que apenas se entregara ao presente, à vida, ao tédio de se saber acorrentado à lembrança permanente do crime que cometera, as suas mãos ainda cheiravam a sangue, a cor vermelha nunca delas se soltou, o seu olhar arregalado e assustado como aquele olhar de quem ele matou, o seu corpo quase morto pelo pecado e a sua boca selada pelo segredo que a terra há-de comer.
. façam de conta que eu não estive cá .