Agora , um fato novo dobrava a esquina, negro, reluzente , luzes e de sirene ligada ; o velho espalhafato em modelo do ano.Chega a polícia para montar guarda e impedir os moradores mais renitentes de reocupar seus imóveis e provocar outro desabamento , foi o que disseram .
Chegara o dia da a reunião final com o pessoal da prefeitura e os caras do banco . Os contactos anteriores , todos inúteis , corridos seis meses de negociação .Formou-se uma nova comissão de ex moradores .
A reunião seria num salão da escola municipal , a dois quarteirões do prédio .Chegaram
ás noves horas os representantes do banco , juntamente com três advogados da Prefeitura. .A multidão de ex moradores barrados na entrada , curiosos do bairro e da vizinhança , velhos e crianças, acompanhavam os acontecimentos da Praça da Bandeira, aquela altura, uma tentativa de obelisco revestida de limo e descaso, no centro de um círculo de bancos de cimento ; a grama e o mato vicejando com força total.Vendedores de pipoca e amendoim aumentavam seus lucros.
Um dos gerentes do banco leu o documento , sobre a oferta de crédito “a juros bem acessíveis para as novas unidades habitacionais a ser construídas , mediante um consórcio entre os moradores e o banco, tendo a Prefeitura como avalista” . Surgiram os comentários indignados : depois de seis meses vivendo de favor ou pagando aluguel, nada existia de consistente ?
Uma hora de reunião , o alarido transborda para as ruas : na esteira do impasse e dos riscos de desabamento ,aos ex-moradores foi oferecida a mudança para um conjunto residencial , com preço de unidade equivalente ao de um apartamento novo, do “mesmo padrão de qualidade” em fase de acabamento , nos limites da área metropolitana ; aqueles que não pudessem ou não quisessem a mudança teriam ao seu dispor “um financiamento a juros especiais , valores abaixo dos praticados pelo mercado “ em áreas ainda mais remotas . A mentira rolando horas e horas, dia após dia , acomodara-se naquele salão .Ninguém era responsável pelo desabamento,tudo fora um “evento lamentável “, afinal “tratava-se de uma obra já antiga , sequer fora encontrada a documentação do habite-se” .
Foi o suficiente para a geração do tumulto ; das agressões verbais aos pescoções, cabeças quebradas e rostos ensanguentados ; policiais cercaram a escola, gás lacrimogêneo em olhos já vermelhos de ira , nove presos por agressão física e desacato ás autoridades , cinqüenta e seis famílias ao sabor do próprio ódio. A chegada de reforços apenas enfureceu os ainda irresolutos , que não entendiam porque comprar o que já era seu ; quem podia pagar o preço estipulado não moraria jamais em nenhum cu de Judas. O preço era condizente com bairros mais próximos do centro da cidade ..
Reginaldo a tudo assistia , silente e distanciado . Na sua idade , o mundo não tinha um estoque tão grande de surpresas , aquele filme já passara , o final era conhecido e agora
transmitido em tempo real , pelas emissoras de TV que chegavam em massa ao local, jornalistas de voz empostada e penteado impecável, narrando na competência imperturbável e rotineira , a fúria lacrimejante e perseguida á cassetete pelas ruas do bairro .
O noticiário vespertino anunciou a demolição do que restara do prédio , “o mais breve possível” , a entrevista do prefeito, que se dizia “confiante na alma ordeira da maioria, consciente que tudo estava sendo feito da melhor forma possível”, prometendo entregar á Justiça “aqueles que se aproveitavam do momento difícil para espalhar o vandalismo e a confusão entre pessoas pacíficas e ordeiras,vítimas de uma fatalidade” . Sentado na sala de jantar , compreendeu o que tinha de ser feito e como faze – lo .
Desligou a TV , tomou de um velho álbum de fotografias , localizou as fotos alegres das confraternizações de final de ano , olhou aquelas faces risonhas e afogueadas pela cerveja amistosa e farta, dos numerosos churrascos e confraternizações realizados nos galpões de trabalho , ele ,Factótum , abraçado ao chefe canalha e piadista ,fotos suas nas mais diversas situações, graxa no rosto e dentes ao sol , pó de serra no macacão e abraços de urso dos encachaçados de primeira hora . Sentiu-se dentro da velha repartição, entrando e saindo de cada sala , cada galpão , cada recanto .Trabalhara num sumidouro de dinheiro público, que fazia reparos em estradas conforme a direção dos ventos políticos , instalando asfalto que sairia com as primeiras chuvas, batizado de asfalto sonrisal pelos próprios engenheiros , que fingiam supervisionar aquela merda toda e que também faziam ótimos serviços , de conformidade com estranhas condições. Uma busca no seu guarda roupa resgatou um chaveiro , que conservara consigo após a aposentadoria , talvez resultado de saudade ou esquecimento:diversas cópias de chaves que tinha confeccionado , por ordem de algum chefe de seção , algum rosto perdido na longa fila de chefias em mais de trinta e cinco anos de serviço , todos sempre ordenando alguma coisa , justa ou absurda , ele , o Factótum , sempre a cumprir o que dele se esperava , até ordens nojentas sob forma de pedido .
Lembrara do chaveiro quase um ano após a aposentadoria , tempo suficiente para ficar envergonhado em devolvê-lo sem imaginar-se tachado de gagá ,irresponsável ou então doente dessa tal de Alzheimer ,” caduquice moderna e desgraçada , pior que as outras” .
Na manhã seguinte , identificando-se como ex funcionário , visitou a antiga repartição.Uma ida ao Departamento de Pessoal,informou- o da aposentadoria de muitos amigos e contemporâneos . Cabisbaixo e anônimo , crachá de visitante ao peito, percorreu os corredores , salas e galpões que lhe interessava rever . Constatou que quase nada mudara , além das aposentadorias e das terceirizações , á sua época, quase inexistentes.
Os novos tempos produziam funcionários que não eram funcionários , geravam pessoas sem nenhum apego ao local de trabalho nem á própria função, em meio aquilo tudo. Hoje , aqui, amanhã “onde desse para trampar” . Observara , fixando mentalmente tudo que lhe interessava e deu-se por satisfeito. Devolveu o crachá á saída e tomou o ônibus para o centro da cidade.
Olhando as ruas , pensou que talvez os novos estivessem com a razão .Seu erro fora o apegar-se e a nostalgia que apenas servia de motor á indignação . Confundira durante anos , as pessoas com a instituição e agora percebia que as pessoas venciam de goleada aquele sumidouro de dinheiro público , onde havia os bons e honestos ,independente do que avistassem pela frente. E não eram poucos .
Visitou Daniel , no final de semana , compartilhando o almoço frugal e rápido . Nessas ocasiões, levava sempre algum prato , comprado num restaurante de comida no peso, lá do seu bairro . Doía – lhe a pobreza inerte do filho e não queria sentir –se um peso , a comer e beber de sua mesa .A conversa correu serena , após a refeição . Passeavam sobre a mesa limpa, as pequenas misérias do dia a dia ; futebol, trabalho ,o filho animado pelas férias a partir da segunda – feira . Bebeu o café da nora , acossado pelas lembranças da família inteira reunida ,os filhos pequenos ontem, as travessuras dos netos , hoje .Quanta lembrança sorvida numa xícara de borda trincada , com detalhes azuis em plena dissolução pelo tempo, naquele arremedo de porcelana . Agora, a saudade era do futuro .O passado , saboreado entre o nariz e o céu da boca As generalidades amontoavam – se na conversa maneira , que findaria com a visita encerrada á tardinha . Pediu ao filho o carro emprestado , alegando necessidade de procurar uma nova morada e os olhares já atravessados do irmão Gilberto e do seu serpentário .
andrealbuquerque