Contos : 

Um sábado e duas redes

 
Manezinho contemplou os olhos vermelhos de ódio e cachaça á sua frente,estendeu a garrafa por cima do balcão e abasteceu aquele copo que parecia sem fundo , saciando a sede peregrina de João Caboclo. Beberrão ele era ,mas naquele dia , embebedou - se diferente de todas as vezes : a fala enrolada , mas a cabeça lúcida,quase não tombava , virava o copo e lascava na ponta da faca , o pedaço de charque , que ás vezes arremessava pra cima e aparava com a boca .

Algo estranho naquela sede ribeirinha , de beber até o rio lá embaixo, se virasse aguardente . Mas o ardente mesmo era o juízo dele,o dono da bodega , pastorando o último bêbado do sábado á tarde, o banzo de fim de feira , a matutada voltando pros sítios , e ele aturando um pau d água esquisito , bom pagador e respeitador , mas só a imagem de Elza , o que não foi e tantas possibilidades , fazia - o suportar aquela besta fubana.Namoro de juventude, dez anos atrás,agora cruzavam- -se na rua , o cumprimento constrangido da Elza recém – casada , virou silêncio e olhar perturbado para um chão que nenhum dos dois enxergava , embora vissem . A vergonha pelo que não fizeram , do desejo aspirado á força bem para dentro , a roedeira terna e eterna , um sofrer fugidio e pegajoso .

E correu o tempo , aquilo ia queimando por baixo, feito fogo de monturo ; João Caboclo, rei da vaquejada , pequeno no tamanho , grande na brabeza, melhor criador de gado gir das redondezas , cachaceiro emérito de sábados e domingos , um pirralho a cada ano e nisso já se vão seis .Desmerecia a esposa , tomando a prima Nicinha como amante , toda a cidade já sabendo , apenas Elza se fazendo de doida ; ultimamente , aos domingos, ia até a igreja acompanhada da pirralhada toda , o marido de mundo afora, engolindo poeira e farejando aguardente .A Nicinha , boa bisca , tinha namorado : Doca Faustino , um comerciante de miudezas , magro , encurvado pela altura e pelo peso dos chifres , diziam as almas sebosas , na tenda de Biu Barbeiro , entre uma meia – cabeleira e uma costeleta pé-de-bode no capricho , igual á daquele gringo, Elvis Presley.
Aí os pensamentos de Manézinho fizeram um arco no espaço , feito ave de arribação buscando rumo , aquela conversa sem fundo nem boca , um lero lero de encher até pneu de trem , que nem tinha pneu , olha só . Mas de supetão, o pau d’ água debruçou- se no balcão e sussurrou , um bafo de onça filho de todos os alambiques - segredo de bêbado também não tem dono :
- Manesinho , hoje eu mando Doca Faustino pras profundas dos infernos , pra derreter os chifres até dar um circuito no zumbi dele, porque corno não tem alma...
.Agora o encachaçado era Manesinho , sem cachaça nem nada , a confidência entrou no ouvido e começou a dar cangapés , lá dentro do juízo . A boca secou mas a curiosidade não, debruçou junto dele e cutucou a onça :
- João , desculpe, não ouvi direito , você vai fazer o que, mesmo ?
- Fazer o mundo mais maneiro , mandando Doca Faustino pro inferno , porra !
Mais uma lapada de cana , outra virada , agora uma lasca de queijo de coalho , puxou um bolo de dinheiro do bolso , pagou a conta, de gorjeta, bem , pra que falar na gorjeta agora ? Saiu , de cabeça baixa, a Rua do Carvão estreita pra tanta brabeza movida á cana . Manesinho matutava , João Caboclo era um bêbado completamente diferente, não tombava nem conversava miolo de pote, mentira então , muito menos. Assuntou a vida , olhando pra balança velha, o queijo ainda lá encima , olhou o prato ainda reluzente por fora e já escuro por dentro . Tiroteio á vista , viuvez á prazo .

Elza ainda gostosa , mesmo cheia de menino , aqueles olhares constrangidos, relâmpagos de desejo mal-satisfeito ? Ainda o queria ? Se aquele miserável não acabara com o corpo , a cabeça ainda dava conta ? E a humilhação , depois de tanta esfregação , juração de amor e ainda fazer sua semente deitar á terra , um medo mais pra nojo que medo , mesmo . Agora , seis filhos nas costas , a prima raparigando com o esposo e .... E ? Que a vida resolva suas próprias broncas , ele continuava naquela solteirice viúva, vivendo com a irmã meio louca , na doidice de ficar na janela da sala ,acalentando o filho que só no pano e naquele fundo destrambelho da cabeça existiam .

Foi invadido por um cansaço , embalado no calor de janeiro , sentou num tamborete , escorou-se numas sacas de feijão , o sono pegou – o de cheio mas desabou correndo de dentro dele, com os gritos de Neco Gato , de braços abertos , segurando- se no portal , anunciando que quase agora, no final da tarde , João Caboclo matou Doca Faustino , e vice-versa , mais pra vice do que versa, pois João Caboclo levou cinco tiros e só acertou dois , mas no coração de Doca . Manezinho levantou-se ,foi até á porta , olhou para o alto da ladeira da Rua do Carvão , a tempo de ver duas redes ensangüentadas , transportadas lado a lado . Os carregadores tentavam proteger o rosto do sol,os chapéus não ajudavam; mesmo no final da tarde , o sol de janeiro ainda era uma fornalha ardente.




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andrealbuquerque
 
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