A vaca leiteira pasta na manga fronteira ao curral
Lambe o sal, sacode a cauda e muge chamando a cria
Novo dia se levanta no vaivém do nascer e pôr do sol
Nas Gerais de Minas, o sol dorme sobre o gigantesco travesseiro das montanhas. Medroso, desperta sonolento no balde de leite do vaqueiro e vai dourando de luz os campos, mata adentro gerais afora. No topo da serra canta a seriema. Dorme a natureza embalada neste canto e o brilho suave de seu pranto faz-se orvalho ao amanhecer. Naquele dia, Cláudio volteou o curral antes do sol. Mandou Zenofre afrouxar a mão nas tetas da vaca e ser mais pródigo com a cria. Mimosa estava fraca, carecia de suplemento. Foi minguando o leite, minguando... Até que apareceu no pátio sem o bezerro.
O fazendeiro mandou rastrear qualquer sinal felino de grande porte, uma pegada, uma carcaça de presa, o que fosse. Levasse os dias que levasse. Varresse tudo, do grotão de Campo Grande até o grande cerrado de Sete Passagens. Assuntasse qualquer rabeira ou vestígio de animal selvagem por ali. E se encontrasse onça, trouxesse a lembrança do couro amarrado no rabicho da cela.
Negro e manso desde pequeno, Zenofre zunia defensivo como abelha-branca, se assanhassem seu ninho.
— Onça aqui não bebe água, disse ele.
— Cuidado! O bicho é astucioso. Anda sem fazer barulho e quando se revela, está perto demais...
A mando de Cláudio, Euzébia de João Velho preparou víveres suficientes para sete pessoas em incursão na mata durante aproximadamente três dias. Leonísia de Adelço ajudou a socar carne seca no pilão e a encher quatro pares de alforjes com paçoca, rapadura, e água à vontade nas bilhas. À tardinha, a peonada se reuniu no alpendre. Zenofre Borá manobrou a cravina: culatra... culatra... A arma respondeu que estava de prontidão. Joselino Sousa conferiu a mira da parabélum e uma pomba verdadeira caiu no terreiro. João Velho afinava a ponta da zagaia com que abatera, quando ele era jovem, uma suçuarana na Furna da Onça. Calmamente, João Congo torcia as pontas do bigode, enquanto procurava por falha na malha da rede de caroá, aferindo se a tralha era capaz de suster animal do porte de uma onça. Coube a Vespasiano levar o mosquete e a respectiva forquilha de suporte. Piruruca do Curral de Dentro, levaria toda a tralha: água, mantimentos e a rede de caçador. Júnior de Dr. Adilson também foi, mas este não conta. Não era empregado da fazenda. Estava guardando férias em Campo Grande e quis entrar na infunca da onça, só por folia. A alegria era dele, mas a carabina e a coragem eram do pai.
Pai Luís fica para tomar conta do roçado. Disse Manuelzão. Adelço também não vai, precisa botar sentido na fazenda.
Meeiros e enxadeiros não se apresentaram.
— Cadê os outros? Perguntou Cláudio.
—Nem sinal de vida. Respondeu Zenofre.
— Melhor assim.
—Inté a volta, patrão!
—Até...
Em noites de lua clara, a peonada se reunia no alpendre da fazenda, para ouvir as estórias que Cláudio contava nos acordes de sua viola. Cansado, naquele dia, disse aos cafuçus: “Hoje não toco viola.” Foi quando Tonico Oliveira se manifestou recitando Ferreira em pé-de-verso, guardado na memória desde a mocidade.
Dim dão, Dim dão...
João Grilo foi um cristão que nasceu antes do dia,
criou-se sem formosura, mas tinha sabedoria
e morreu antes da hora pelas artes que fazia.
Nasceu de sete meses, chorou no bucho da mãe;
quando ela pegou um gato ele gritou: ‘não me arranhe’
não jogue neste animal que talvez você não ganhe.
Os caçadores ainda estavam embrenhados na mata escura. Vaqueiro Zenofre guiava. Teve vontade de amarrar o cabresto da montaria do Júnior de Adilson na cabeceira de Xerém, burro sestroso, e bravo. Mas não atrelou. Preferiu passar severas recomendações ao cavaleiro afoito, chegado da cidade:
—Fique no meio dos outros, doutor. A onça se mostra ao da frente, mas ataca é o derradeiro.
— Vamos parar pra verter água. Disse João Velho.
— Faça da cabeça da sela. Tá escuro ainda. E d’agora em diante, ninguém desse dos arreios sem eu mandar.
A intenção de Zenofre era surpreender bicho grande na furna da onça. Chegaram ainda escuro. Fizeram fogo na entrada da gruta. A furna respirava a fumaça, puxava para dentro e depois soltava como João Velho fumando cigarro de palha.
—Evem coisa, disse João Velho, quase em sussurro.
—É uma raposa! Ninguém se manifeste.
Fizeram absoluto silêncio, mas nada se ouvia, senão o crepitar de galho verde ardendo no fogo e pequenos roedores que saiam da toca, correndo desembestados.
Arribaram.
Cachorro Graudez latiu longe encomendando tatu. Zenofre ralhou e seguiram marcha. Mais adiante, o vaqueiro parou. Tirou o chapéu, beijou o escapulário de Nossa Senhora do Carmo e se benzeu.
Os cachorros acuaram bicho no mato.
Agora se espalhem de dois em dois — disse Zenofre — O rapaz da cidade fica comigo. João Velho pode seguir sozinho ou fazer uma trempe com mais dois. Todo mundo amontado. É preciso varrer esse sovaco de serra pisando miúdo, passando pente fino.
O tempo ainda estava turvo, quando avistaram um vulto na copa de uma árvore.
—Não desmonte, disse Zenofre, a onça está acuada.
Esperou um pouco, sempre de olho em um pau-preto, cujos galhos se moviam sem vento. O sol levantava lentamente trazendo o lusco-fusco da primeira aurora. Teimoso, Adilson Júnior apeou abismado, contemplativo, com a beleza da natura que aos poucos se revelava.
O xixixi da chuva fina quebrava suavemente o silêncio da madrugada. Gotas miúdas caiam, escorriam para o rio que corre para o mar além das Minas Gerais. Naquele tempo chovia, o sol se escondia semanas a fio, quase mês, e o rio transbordava. Os meninos se banhavam nas águas barrentas com as vergonhas de fora. Não tinham maldade. A infância era tão ingênua e bela como as flores que as meninas colhiam para enfeitar o presépio do Menino-Santo. Era estação das águas. Vinha a chuva abençoar o pasto, trazendo berro de bezerro novo. A jitirana espalhava suas flores deixando a mata em tom azulado. A lagoa enchia e depois vazava para o rio e o rio deixava peixe na lagoa. O trovão trovejava e trazia a coalhada escorrida, escorrendo numa bola de pano pendurada no travessão da casa.
O destemido vaqueiro desceu da montaria. Graudez não latiu. Abanava o rabo e lambia os pés do dono. Cachorro Ninguém ladrava desesperadamente, os outros respondiam longe. Zenofre largou a cravina no chão. Amarrou a lanterna na copa do chapéu de couro, prendeu na boca um cutelo e em volta da cintura atou uma corda de laçar boi. Adilson Júnior manobrou a carabina de dez tiros e fez mira para disparar no pau-preto que se movia.
—Não atire! O latido não acusa onça.
Zenofre subiu na árvore e no emaranhado da copa deparou-se com uma figura simiesca, semelhante a um macaco albino. O bicho grunhia como os espíritos que rondam a noite na selva. O vaqueiro aproximou-se, jogou lanço certeiro. Prendeu o animal com a grossa corda. Puxou devagar, sempre dando volta, tecendo uma teia entorno do ser tão semelhante ao humano. Aos poucos foi dominando a fera e já no chão, por um descuido dele, a selvagem mordeu-lhe a panturrilha. Os cães avançaram para estraçalhar a caça. Zenofre repreendeu todos eles e Graudez veio lamber a ferida onde a índia cravara os dentes. Ela balbuciou algumas palavras em língua que ele não conhecia: “Xambioá...Xambioá... Xambioá...Apinajé.” E o vaqueiro perdeu o faro da onça.
Adilson Júnior sujou as calças.
—Esse bicho tá fedendo demais, seu Zenofre! Disse o rapaz da cidade.
—O bicho cheira a caça do mato, respondeu o outro.
Vaqueiro Zenofre uniu as mãos fechadas em concha e soprou entre os polegares. O borá quebrou o silêncio da mata percorrendo um raio de meio quarto de légua. Alguns caçadores responderam com um assobio fino: Fííííu...fííííu... João Velho mostrava ânimo, mas não chegou a tempo dos primeiros nós. Piruruca perdeu o ritmo da cavalgadura, a tralha e a vareta de açoitar cavalos. Os outros, cada um trazia seu quinhão de medo ofuscado na lanterna acesa, pois a madrugada já tomava vestes de noiva, alvorecendo devagar no canto da passarada. Caburé soltou canto assombroso apregoando morte. Raposa apareceu no lugar da caça, é mau sinal.
—Alguém viu Joselino? Quis saber Zenofre.
O parceiro de Joselino era Piruruca, gente vinda do Curral de Dentro com o juízo de fora. Piruruca tinha perdido a tralha, tudo que levava e se desgarrado do companheiro.
Ninguém viu Joselino.
Esperaram um quarto de hora, assobiaram,gritaram o nome dele, cruzaram focos de lanterna no céu, tudo sem valia. Fizeram o que podiam. E nada do vaqueiro Joselino aparecer ou dar ares de vida. Voltaram sem o companheiro. Mais tarde, haveria algum camarada descansado, refazer a trilha e encontrar o vaqueiro deixado para trás.
Espiados por um olho de sol coado entre os galhos da mata, romperam caminho de volta e horas depois, cavalos e cavaleiros riscaram o pé da cancela na sede da fazenda, visivelmente cansados, ansiosos e de boca seca. Era justo o prometido: cada caçador ganhar na volta uma bezerra. Tanto faz ter chegado na primeira hora como na derradeira, a graça do santo para quem acompanhou a procissão é a mesma. À frente da tropa ia Zenofre, puxando a índia, sempre seguido de perto por seu cachorro de estimação. Alguns de casa inda guardavam repouso da noite de ontem. Cláudio acabara de tomar uma xícara de café escoteiro e estava com roupas de dormir, quando ouviu o tropel. Queria saber do sucedido com a caça e com os caçadores.
—Tá ficando maluco, homem de Deus! Essa é a onça que comeu o bezerro da Mimosa?
—Se comeu, não sei. Mas é uma índia ‘fema’.
— O bicho fala?
—Prezei. Ela dixe. “Xambioá, Xambioá... Apinajé...”
A índia, provavelmente, era da tribo Apinajé e tinha uma ferida debaixo do peito de onde escorria uma resina semelhante à mucilagem da babosa; gosmenta e brilhante como o rastro deixado pela lesma. Taturana, concluiu Cláudio. Taturana queimou o peito da índia.
— Corina, chegue aqui! Traga uma roupa sua para cobrir este animal.
—Nossa! O cheiro é bom, a mulher, feia.
—Que vamos fazer com essa coisa, seu Cláudio?
—Amarre na casinha de curral. Na sombra, presa só pelas mãos, com corda comprida. Dê água e comida. Ela é sua. Quem amansa burro bravo, haverá de domar também esta fera. Se com trinta dias não entregar os beiços, solte e deixe ir embora.
Durante duas semanas a índia só aceitava água e fruta. Foi quando Zenofre se lembrou de dar carne chamuscada, só lambida de fogo. Ela comeu e ficou reparando o escapulário. Vaqueiro Zenofre retirou o relicário do pescoço e deu à índia. Ela pôs no próprio pescoço, em ritual indígena, depois o devolveu. O vaqueiro ficou sem ação. A selvagem gesticulou, disse algumas palavras ininteligíveis e Zenofre percebeu pelos gestos dela, que deveria repetir encenação. E o fez, mantendo o escapulário no lugar onde sempre estivera: no pescoço dele. Eram amigos ou estavam casados, no entender da índia.
—Zenofre, mande Adelço ir atrás do vaqueiro desaparecido, dissera o patrão assim que os caçadores de onça chegaram.
As horas corriam. Joselino sozinho, com a arma atravessada no arção da sela, deparou-se com a fera no despenhadeiro. Dona Euzébia que preparara a matula chorava a sina do filho que em mata fechada, em luta travada entregara seu espírito de vaqueiro ao Criador. “Será que meu filho comeu, pelo menos da paçoca?” E olhava as mãos calejadas na soca do pilão. Distante, viu um vulto cavalgar o trote da vitória.
—É seu Joselino, gritou um menino.
—E traz um couro de bicho na lua-da-sela, pintado, bonito, estampado de preto e amarelo-ouro como chita, disse Euzébia.