não há nada além de mim dentro em meu corpo. nada sinto que não seja físico, palpável ou provável pela ciência. não permito que a fé me habite, que a alma faça de mim um abrigo ou que qualquer divindade seja guia de meus passos. abstenho-me de soluços milagrosos, crises epifânicas para além das nuvens ou objetos-símbolo de qualquer adoração. o que existe é a pele. o que existe é a carne. o que existe é o suor e o sangue e as mãos. a mão que pega no torno é a mesma mão calejada que, com suavidade, acaricia os contornos da forma feminina. a mão que dá vida à terra é a mesma mão que recebe a vida do ventre de uma mulher.
os braços de um estivador, embrutecidos pelo trabalho, à noite sentem repousar sobre eles uma cabeça que nem de longe pesaria tanto quanto as sacas, mas que traz consigo todo o peso do firmamento. não se pode negar o amor de um casal, por mais penúrias que passe, quando os dois se abraçam. um a proteger dos perigos, outro, a dar razão para se ter medo da morte. e é uma das imagens mais lindas que já pude perceber. é o máximo que pude enxergar de divino. além disso, para mim, não há nada.
o que pensar quando se ama, que não querer ser perfeição? o que dizer quando se erra e, errando, se machuca o ser amado? como agir sem desespero, tendo pelo resto da vida a idéia de vazio sem a presença de um firmamento para segurar? que diria atlas, se acaso lhe tirassem um dia o peso das costas? sentir-se-ia aliviado? sentir-se-ia saudoso a ponto de ir todos os dias ao lugar em que, ajoelhado, tinha os céus nas mãos?
perdem-se os céus das mãos e perde-se o chão dos pés. o sentido perde-se, o caminho perde-se, as idéias perdem-se, o bêbado perde-se, a memória perde-se. resta a insônia, a fome, a sede, a busca nunca realizada. perde-se do corpo a alma nunca antes sentida. perde-se a fé. perde-se a esperança. perde-se qualquer força de vontade pois a única vontade é ter o firmamento nas costas de novo. perde-se toda a sorte de sonhos, como peixes que retornam ao rio dos mortos.
perde-se o futuro. o passado vira anzol preso nos lábios, a lembrança vira linha, a esperança vira vara e nós, pescadores de sonhos. e nós somos a isca para pescá-los. e nossos corpos, boiando no rio dos mortos, envelhecem. mas não sentimos nada. o pescador não se apieda da isca. o sonho, se ainda houver algum a ser pescado, morrerá logo que pouse na terra.