A agrura erigida em cal ,no alvor do muro á sua frente . Passava agora as mãos, pelo rosto, como se moldasse a própria máscara mortuária (aqueles soldados gargalhariam se lhes falasse disso) ; na aridez do rosto : ruga frustra, da fronte ao queixo, da vida engolida aos borbotões , sob o signo de prevaricação com a morte, no enregelado amanhecer da vida até o sol do meio-dia do calor esvaído, da efusão frouxa e covarde em relação aos outros, que fingia não ver , mesmo ladeando-os ombro a ombro, nostalgia antecipada do simplesmente estar vivo e bulindo, o que , digamos, não era nada mal .
Passava agora a mão pelo peito,alisando anéis crespos e pilosos , onde nesta manhã muitas balas se aninhariam ; talvez poupando aqueles anéis escuros , elásticos , em transe acariciados. Não mais estariam ali , nem os outros nem ele.Na verdade,o mundo acabaria , porque acabaria para ele e o mundo era enquanto ele via o muro.
Após o fuzilamento,quando todos lhes tivessem dados as costas,seria o que ? Muro absoluto ? Coisa em si, crivada por balas de fuzil?
Não , sem ninguém para percebê-lo o muro não era. Nem seria. Até nem teria sido.Mas foi feito e lá estava , aguardando – o , mato a crescer entre as gretas dos tijolos , como quem foge dali, como quem apesar de ,tenta fugir; melhor ainda : esboça um primeiro passo da fuga,ainda acorrentado pelos tornozelos, ali ,tendo os outros a esperar que lhes façam justiça matando-o; pois o que vê agora não tem nome , não é mais vida nem se pode chamá-lo viver . Ainda que o primeiro passo fosse também o último.
Enxergava-se a criar arredores, como se a alma já escapulisse dele e não mais fosse ele (nem dele) ; algo autônomo, de percepção própria , capaz de escalar o muro e olhando acima dele , ver as colinas; as colinas pelas quais tudo o que pensava amar e odiar amava e odiava , as colinas vistas daquela realidade de zumbi .
Ao longe , um soldado hasteava a bandeira de um país que talvez nem existisse além daquele pano pintado ; no viver em suspenso ,naquele estado sem definição,sem trocas,sem perdas, sem vislumbre de nada, apenas o muro a levitar do chão, a grama escalando a parede e os outros fragmentos de uma percepção que nada mais tinha a ver
com ele; até reflexos conhecidos, registráveis ,olvidáveis, sequer eram um feixe de sensações, de tão incompleto se tornara aquilo tudo , simultaneamente tão forte e tão fraco ,sem céu, sem chão, sem vez,sem ódio,sem medo ; sem nada , como chamaria a si se não existia o Si ?
Não existia mais,talvez aguardasse apenas perceber, agora que o oficial ordenava fogo e as primeiras balas já o trespassavam ; sequer tinha lembrado de gritar um vida ao seu país , que tombava com ele , em meio á fuzilaria.
andrealbuquerque