Meu São João encontrou-me de joelhos, recitando as rezas que aprendi da minha mãe .O tempo arrastou-me pra lá e pra cá e derrubou – me de onde nunca saí : desta casa , dos pés desse oratório, três filhos e um homem que já foi meu e hoje não é mais de ninguém : Gabriel e Belzebu , sem lado de avesso nem desavesso, surra de cinturão e doce de mamão . Nas quebradas da serra do Milho , o foguetão ribomba, fazendo eco de grota adentro enquanto tento rezar um pai-nosso , catando palavras no meu juízo desleriado , como quem esvazia um mealheiro , moeda atrás de moeda ,uma fé amolada que não me dá mais sustância de fincar o pé , levantar a cabeça e pelejar contra as presepadas da vida . A janela aberta traz o frio das serras e a visão da minha fogueira ,tão bela , isolada e desolada , tão grande , quase um pecado de boniteza num tempo de coisa santa , do meu São Joãozinho , ali , no meio do meu terreiro varrido e varrido desde manhã cedo . Olho a estampa de meu santo no oratório, abraçando seu carneiro , mas o olhar se desimpacienta e percorre o resto da sala, os retratos retocados
do dia do meu casamento e o do meu pai e minha mãe – na graça de Deus desde 97 .
Minha mãe queria ser enterrada de mortalha , mas no calor da doença, arrenegou tudo,como quem quer apostar contra a morte e testar se a gente acreditava mesmo que ela já se ultimava .Neguei que tivesse costurado a mortalha, mas minha irmã Corina , feito os pés da Besta , contou que já estava cosida e dobrada ; tudo no medo torto de desgostar nossa mãe , até na hora da morte – dizia olhando pro chão , dando um riso doido , abilolado mesmo .Meus meninos foram cedo pra rua , catar namorada nas festas ; precisão de mulher é bicho danado . Fora as velas do oratório , a casa toda apagada ,um sossego frio me abraça pelas costas . Levanto , no meu quarto acendo a luz , visto a mortalha da velha , vejo o corpo estrebuchado de meu marido , olhar grelado daquele que sangrei feito um bode , encima da cama , sem raiva e sem medo, só por precisão minha . Beijo-lhe a testa , boto a faca encima do seu peito , entre as mãos : rosário de ateu desgraçado .Do espelho da porta do guarda roupa , uma boniteza triste vestindo aquele traje . Mas tudo ficou pra trás , o que vacilou eu empurrei no buraco das desacontecencias . Decidida , abro a porta da frente , sentindo a friagem do sereno no rosto , caminho até o terreiro , mergulho no ardor de meu São João ; o fogo queima por dentro e por fora , mas a dor já não está mais aqui . Nem eu.
andrealbuquerque