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Gê Muniz
CATARSE
Bailados autômatos, mecânicos, conduzidos talvez – por que não? - pelo movimento infalível dos astros. Quiçá Urano, quem sabe Plutão. Há quanto tempo a classe política faz e desfaz sem jamais ser incomodada pela população? Quem sabe fosse preciso nada menos do que efemérides nos céus para finalmente causar reações sociais desta monta numa classe de indivíduos que já foi rotulada pelo historiador Sérgio Buarque de Hollanda como “homem cordial”. Carl Jung esfregaria com satisfação suas mãos ao confirmar com sua superior clareza que, através das matemáticas atitudes depredatórias das massas brasileiras, estão ratificados os arquétipos do seu "inconsciente coletivo". Parece haver por detrás de toda essa desconstrução cívica e física uma significativa e misteriosa razão, tão furiosa e profundamente racional que nos aparenta falsamente travestida de insanidade coletiva. Não é. A destruição pode ser bela, libertadora. Por vezes penso que o maior espetáculo de todos os espetáculos, talvez seja aquele do fim do mundo. Os tantos e quantos miseráveis, os milhões de excluídos têm um extravagante senso estético. Há, sim, um extremo e mórbido prazer em se destruir palácios e prédios. Quem não tiver medo de procurar esse desejo escondido dentro de si, poderá se surpreender, porque acabará por encontrá-lo. Apedrejar instituições bancárias contém em seu bojo um teor de vingança santa e até os banqueiros poderão entender do que eu estou falando. E ainda há o fogo. Ah, o fogo é o grande purificador em todas as grandes manifestações. Não é à toa que uma multidão põe-se a girar e dançar ao redor dele após queimar com gosto um veículo do governo ou um ônibus. Mas há outros focos. Eles também saqueiam lojas de departamentos. Dessas, sem cerimônia levam para suas pobres casas o que é mais moderno e funcional, a última palavra em tecnologia. Já das roupas subtraídas, preferem aquelas que estejam na vanguarda da moda. Eles querem participar com trajes de gala da “insana festa da democracia”. Eles são aqueles conhecidos e nominados na grande imprensa brasileira como a “minoria vândala”. Não são minoria, não mesmo. Ao contrário, são aqueles que afortunadamente conseguem dar vazão aos seus instintos, à sua natural animalidade. Eles têm reais motivos para o destino de cada pedra atirada, de cada chute na grade de proteção, embora os senhores intelectuais achem que não. Naturalmente, a minoria vândala desconhece qualquer passado relatado nas páginas da história oficial, bem como as páginas da Constituição Brasileira com os seus maravilhosos direitos e deveres do cidadão. Nem imaginam – nem querem imaginar - o que determinados prédios representam na tradição de uma cidade ou do próprio país. Não estão preocupados com o alto valor artístico e cultural dos objetos que se encontram pendurados às paredes, decorando o ambiente dessas edificações. Eles apenas deixam o seu recado: não se importam em descartar sem remorsos, seja em meio às pedras ou submergidos pelo fogo, os símbolos maiores erigidos em homenagem à sua tragédia coletiva.
P.S.: Jimi Hendrix, o maior e guitarrista de todos os tempos, ao final de muitos shows inacreditavelmente queimava aquilo que mais amava na vida: a própria guitarra. Mas como? Queimar a querida que ele acarinhou de forma genial durante todo o espetáculo como fora ela o corpo de uma mulher sensual? Num gesto que parecia ser uma profunda forma de respeito, ajoelhava-se ao redor dela e abria os braços para vê-la queimar e queimar como estivesse à captura da mais pura essência da alma do instrumento. Não: não há qualquer forma de respeito na depredação ou queima do patrimônio público. Há, sim, excessiva raiva, ódio, fúria. E onde existem esses sentimentos, com certeza, também existe, mesmo que bem escondido, amor.
(Gê Muniz)