Composição
A poesia me compõe pedaço a pedaço, me refazendo diariamente.
Ela que mantém meu resto de sanidade, meu final de juízo,
Aparando arestas e dando algum brilho às minhas noites escuras.
A poesia me constrói verso a verso, estrofe a estrofe,
Página por página e, cada livro composto é um Milton
Que não existe mais.
E repetidamente me fecundo no olhar do mundo,
Este orbe, poesia a viajar pelo espaço redescobrindo estrelas.
E novos poemas saltam à luz, talvez para me cegar,
Talvez para me dizer e me construir um novo presente.
E um novo Milton traz a lume uma nova encadernação,
Forçando o cumprir
De um destino que talvez não seja meu, nem de ninguém,
Mas que a saga da criação se faz preciso, como se fosse vida,
E que não suponho aonde vai dar, se há um termo.
E nem mesmo conjecturo o que dirão as novas páginas
Ou o que farei depois de um epílogo, que não quer terminar.
E penso na eternidade das coisas, que não sei,
Mas que prefiro pensar assim como quem arrisca a vida
Na sorte espúria de um jogo,
Apostando na tragédia de uma substância que não tem fim.
Porque se não for desse modo, ou se não acredito nisso
Que agora penso, de nada valeria qualquer outra coisa e
Nada teria o poder de me socorrer neste meu desespero de ser isto
Que não me deixa estar contente por ser justamente assim, neste instante.
Escolho acreditar nas surpresas e nos mistérios além das cortinas
E na criatividade de um deus que não sei, que não sei, que não sei se existe.
Mas que prefiro acreditar, porque fui habituado nessa estrada e porque
A outra tem as mesmas curvas e os mesmos mistérios e a mesma angústia.
E se o espaço é infinito, por que minha alma também não seria?
E uma poesia não compõe outra? E mais outra? E tudo não é uma teia?
Por que não haveria um poeta compondo o mundo, esta poesia intraduzível?
E não há itinerário para este suposto fim (palavra bizarra, fim, e sem matéria que a sustente, porque não vejo nada chegando a um termo e parando ali,
fincado como uma estaca a delimitar um território hostil, este pensar.
Algo que estranha e não cabe e não se encaixa).
Tudo à minha volta diz, aos berros, da sua continuação e movimento incessante.
E não vejo nenhuma nave com suas velas recolhidas, arriadas,
Mas meus olhos as contemplam sempre erguidas em gravidez, infladas de altivez,
Arrastando essa corrente de pensamentos como um degredado
Desde os tempos imemoriais.
Milhões, zilhões singrando os céus noturnos e as eternas tempestades,
Sempre em busca de alguma coisa maior do que foi achado há poucos minutos.
Não tenho paz, escolho não ter paz, porque a paz é dos escolhidos, e eu não sou.
Sim, a poesia me prepara e me declama nesses mistérios todos, e me grita, e me berra,
E anuncia a minha chegada e a minha partida, e é sempre um novo Milton
Que parte e um outro, bem outro, que me chega e me cumprimenta em espanto.
E a visita é sempre rápida, num breve aperto de mão, urgente,
Como se a viagem importasse mais, como se a viagem fosse toda a substância.
Porque à alma ninguém deu a graça da imobilidade,
Da escultura grega ou da montanha que estanca a ilusão,
Porque a graça está na eterna transmutação diária, sem nenhum descanso,
Na composição instante a instante do poema que, tragicamente, não termina.
E por que terminaria se mesmo a morte não existe?
O espaço não morre, o tempo não morre e nada pode ter o privilégio da morte,
Se nem mesmo existe, do modo que pensamos essa existência.
E se tudo que vejo é uma grande miragem e eu sou uma miragem,
Então não devo me preocupar com o fim de algo que não existe.
Este poema mostra os ossos quebrados do meu desespero e assim fico contente,
Porque essa desesperada agonia me imprime, como a um carimbo que explode
Sobre a mesa e rompe todas as dúvidas, sem dizer nada, mas legitimando
A frágil identidade que se debate sob a composição dessa escrita,
Que nunca terá fim, apesar de um arrogante ponto final. Não, de jeito nenhum!
Mas hoje estou rindo depois de muito agonizar e aproveito para me compor,
Para me sonhar e para me pensar feliz e seguir minha viagem,
Riscando neste papel minhas impressões que muitos outros pensaram
E vivenciaram bem mais e melhor do que esta minha pobre e humilíssima vida.
Mas não eu, que não sou outra coisa senão um poeta que desconfia,
Com grande margem de acerto, não ser um poeta.
E penso ser e não ser uma infinidade de outras coisas,
Mais do que ser um poeta, porque ser isto, escritor de canções,
Não deve ser lá grande coisa diante dessa vastidão que me consome.
Penso isso só de olhar as estrelas ou uma folha que cai na palma
De uma brisa que passa soprando devagar,
Ou no voo incerto da tanajura anunciando a temporada de férias escolares.
Sem falar na imensidão das coisas pequenas, invisíveis, que diminuem
À medida que mais me aproprio das coisas e das coisas que há e sou em mim.
Até que esse corpo suporte, não irei parar de me construir poema
E não irei parar depois do sepulcro, essa construção adjacente.
Porque não me resta outra opção.
O que me resta é essa liberdade e essa comunhão em mim mesmo, é este amor.
Que isto que aqui escrevo, me corte, me retalhe, me perturbe, me incendeie
Na chama viva que arde em minhas entranhas, mar e mistério, que irrompe
Na semente das palavras que se fazem poemas,
Como a dizer que estou aqui e em todos os lugares a construir pontes,
Para que eu mesmo possa encontrar não outra pessoa, que não existe,
Mas a mim mesmo, todo o tempo, a caminhar esbarrando nos meus escombros.
Que este poema dê a mão a um outro, bem longe e bem íntimo, perto,
Afinal, em mim mesmo.
Que por hora não sei a composição desta matéria que ousa,
Em meio à escuridão de uma tempestade, me construir.
Estou pasmo!
Como tenho suportado toda essa mentira abjeta?
E como farei para me desapropriar dessa máscara
Que galvanizei à face, minha face?
Minha conclusão é que não chego a conclusão nenhuma, ou isto:
Que estou doente,
E a cura seja um acaso, como quem caminha e tropeça
Em si mesmo.
Que ninguém compreenda a chave deste poema,
Porque não é o que espero,
Porque não vai me resolver o enigma de ser ou não ser o que sou.
O que me importa ser compreendido?
A mim importa mais desencravar o que sou,
Como quem desencrava a unha, aquela unha em especial, do meu pé.
O sentido deste poema, desconfio, é isto:
Desencravar a unha que impede meu caminhar.
Milton Filho/01.06.13