Uma parada de ônibus,um domingo cansado.Um nó na garganta , o vaso de porcelana redondo e branco , uma rosa e seu galho, espetados na terra escura..Comprados no impulso Dispensou a embalagem oferecida pela idosa vendedora , no Dia das Mães de 1976. Melhor assim , sentindo o vaso na palma da mão direita . Ele e a avenida semi deserta . Quase meio dia , uma hora de espera e nada de ônibus . Hesitara em lembrar o nome da linha do ônibus . Ato falho ? Vida falha ? Um domingo besta , no centro da cidade . Aqui e acolá passava alguém á cata de uma parada de ônibus , da mercadoria dos sebistas espalhada pela calçada do Savoy , um desvão onde urinar ,sabe Deus lá o que .
Dia das Mães , chocho e sonolento . Encostou-se ao poste . O céu suspirava pingos esparsos de uma chuva abortada que lhe atingia a face , em cadência lenta e irritante . Apalpando os bolsos , sentiu a falta do lenço de pano, antiquado e eficiente . Sozinho na parada do ônibus . O frio da porcelana na palma da mão , fazia-o fechar os olhos e lembrar o poder de uma ausência de vinte anos . O ônibus despontou na esquina da Dantas Barreto , ruidoso .Uma seqüência de imagens interiores , a infância , o bairro , as peladas , os tediosos almoços de família aos domingos , suspendeu-lhe o fluxo de pensamentos . O carro estacou ao seu lado , a porta abriu para o interior sujo e mal iluminado .
Sentou sozinho .Ônibus com poucos passageiros ; aproveitou para descansar o vaso sobre o assento , apenas apoiado pela mão esquerda . Mais umas dez pessoas além dele , se muito . .Uma visita inesperada á mãe , após vinte anos de ausência envergonhada , Flagrado durante o sexo com Haroldo , uma noite , na quadra de vôlei do colégio estadual . Enxotado de casa , após o espancamento pelo pai , João da Velha , policial civil aposentado , trinta anos de comissário na delegacia do bairro , ”nove marcas no cabo do Smith&wesson , a serviço da sociedade,limpando das ruas as almas sebosas” , alardeava .
-Pabulagem chegou ali e parou , confidenciou - lhe a velha Idalina , vizinha de frente,
apontando a arrogância disforme do seu pai , numa noite de Natal.
Uma memorável surra , daquelas de partir cinturão e levar pra cima da folha de bananeira , arrematada pelo jarro de porcelana da mãe , quebrado contra sua cabeça :
–Toma , florzinha do campo !
Esbofeteado e chutado , até a raiva paterna transmutar – se em puro cansaço . Ouviu Nivaldo e Gilda , sua tosca irmandade , fugindo da sala de jantar : o breve arrastar das cadeiras e a medrosa indiferença , empurrando –os até a rua , A mãe , interposta ao massacre : um hematoma no olho e um molar a menos .
Da esquina , o coro de risadas dos amigos durante a surra , contraponto ao massacre doméstico que já durava horas . Coisas de família , roupa suja lavada no braço e no murro e vamos ás friotas , no bar do Antonino. Haroldo , cara de gostosão e calça faroeste apertada, um Sal Mineo á procura da matinê ; afinal era o macho naquela história ; até na morte , copiando o ídolo : aos trinta anos, tombando esfaqueado num bar , nadando na própria hemoglobina .Tempos de pederastia passiva e ativa : um tratamento contábil á sexualidade , lucros e perdas a escriturar na alma e na rua . Ativo não era viado , era um curtidor , mero aproveitador .Ao passivo , a danação eterna , ao viado, o inferno e seus quintos . Reviu a fúria banguela do pai , o ódio banhado em saliva , o peito desnudo , onde cicatrizes de tiro e facada entrecruzavam –se escondidas sob os pelos grisalhos de uma fúria santa . Ódio babão e revólver .38 na cintura , “nove marcas no cabo de madrepérola” , na verdade , trinta anos de corrupção furiosa , achacando bicheiros e cafetões no Alto do Pascoal , até morrer infartado de ódio , espancando um suspeito algemado , na delegacia . Agora , Nivaldo , o definitivo homem da casa .
A vida após a expulsão de casa ,tantos anos morando de favor nas casas dos tios maternos , até concluir o curso de economia e administração de empresas numa universidade pública . .Único formando a não participar das festas , num curso em plena ascensão , no país do milagre econômico .
Afastando – se do centro , o ônibus parou na Praça do Derby. Sobe uma mulher morena, corpo esguio , mini saia anunciando pernas bem torneadas , blusa estampada , decote profundo , cinto largo , óculos de lentes escuras , arredondadas e grandes , cabelos castanhos e revoltos num corte Pigmalião . Ocupou uma cadeira á sua direita , sacou da bolsa um livro que começou a ler ou retomar a leitura , não dava para perceber .
Não parecia concentrar – se no livro . Talvez o desconforto do velho ônibus . Viver pode ser um desconforto . Isso ele sabia . E daí ? Passou a contemplar as ruas num ar de falsa despreocupação . A mulher tirou os óculos , transformando – se numa criatura de olhos assustadiços ,uma apreensão castanha na face meio juvenil .Ofegante, o ônibus começou a descrever uma curva mais fechada , o vaso tombou, entornando areia e o galho da roseira sobre o revestimento do banco . Um palavrão em surdina resolveu – lhe o susto e a raiva que sentiu do motorista . Enfiou o galho no que sobrara da areia . Sorriu amarelo para a moça , um sucedâneo de desculpas pela sua falta de jeito , com rosas , estrume e consigo mesmo ; lamentava – se pelas falhas dos outros .Assim era ele.
Do constrangimento miúdo ,nasceu uma conversa leve , com a bela vizinha . O dia , o tempo , o frio leve e inesperado na cidade , a chuva que começara agora , o ônibus , onde moravam , as expectativas em relação ao dia das mães, tudo rolando no asfalto esburacado e úmido . Na primeira parada da Avenida Caxangá , sobe um homem baixo, cabelo e barba grisalhos , terno escuro , compleição gorducha , forte hálito alcoólico sublinhado pelo andar trôpego , carregando um pacote . Acomoda – se no banco á frente da moça bonita , cabisbaixo , braços cruzados em ébria resignação , parece cochilar ; tem a sonolência entrecortada pelos movimentos bruscos do carro , o torpor se esvai entre paradas , arrancadas bruscas e o buzinar impaciente . Olhos vermelhos de cão danado , dardejando irritação para o mundo. Então , sob a barba grisalha , o olhar vermelho agora tresandando a infelicidade e álcool , a mesma forma da cabeça , a idêntica e paterna maneira de desviar o olhar , evitando encarar as pessoas , até o alisar preguiçoso dos cabelos , idêntico ao do velho ogro , pai e patrão de sua infelicidade , em cópia perfeita e acabada , a espreita – lo de sua cadeira . Um viver oblíquo.
Percebeu –se furtivamente reconhecido , sem medo, sem ódio: o que não cura o tempo ? O irmão abaixava – se e pegava um embrulho em papel prateado e lustroso , com a fita vermelha meio escura da sujeira do chão do carro . Sobraçou o embrulho , fixando um endurecido olhar em frente .Vez por outra , um mergulho etílico , a cabeça indo contra o peito , babando sobre a gravata de seda preta com prendedor dourado, herança do pai , que usava – a ao assumir a delegacia, nas férias do doutor Fonseca , delegado titular.
Perdia – se em reflexões temporãs e inúteis .. No olhar de ódio , percebera um mundo que findara – se desde há muito e com o qual nada tinha a ver , ao qual sequer pertencera , de verdade .
Na avenida , o veículo acelerava , num trânsito meio rarefeito . Acionando o sinal de parada , ergueu – se da cadeira , aproximou – se da beleza aflita , ofertou - lhe a rosa e o vaso de porcelana , em meio á surpresa no olhar castanho e o agradecimento que tinha algo de graça e constrangimento , além do casto e apressado beijo no rosto , roubado por ele, um tímido e até reverente com as mulheres.
Um fio de saliva untava o pescoço e a gravata do irmão , em torpor alcoólico.
O carro parou , porta aberta para a rua. Caminhou apressadamente,saiu do coletivo a tempo de acenar um longo adeus aquela mulher , sorridente e estupefata .
O ônibus arrancou bruscamente , enquanto ele atravessava a avenida , sob a chuva fina de maio.
andrealbuquerque