Poemas : 

Se eu escrevesse um livro...

 
Se escrevesse um livro, temo que não fosse existir nenhum tema principal, em qual me pudesse focar e o qual desenvolvesse. Talvez fosse uma mistura de pequenas histórias que nem sequer eu saberia contar, por falta de visão.

Se escrevesse um livro, temo que fosse a sua pior leitora, logo a seguir a escrever palavras que pensaria que compreendia completamente.

A verdade é que nada me preenche, nada me enche de tal forma que tenha de transbordar para palavras o que não consigo conter em sentimentos transparentes, invisíveis, intocáveis.

Nada me fica, porque nada me vem.
E acabo também eu mesma por ficar entre estes dois conceitos, num mundo em que não consigo desconfundir a realidade distorcida, enublada, dos sonhos e invenções realistas, severa e maliciosamente nítidas.

Se eu escrevesse um livro, não seria lá grande coisa. Um livro sem história, provavelmente, um livro vagabundo, sem casa, sem destinatário e, principalmente, sem remetente específico, pois nem eu pareço reconhecer quem aqui se senta e dita a si mesma palavras para escrever numa folha de papel.

Pergunto-me se é realmente bom criar este mundo, tão confusamente imperfeito.
Pergunto-me se é algo de que me venha a arrepender, se é apenas uma criação, ou se é um jogo perigoso de ideias e imagens que fiz para quebrar o gelo de um vida parada no tempo, um jogo para atenuar a falta de uma vida que realmente se sinta e veja, que escorregue na pele e arrepie.
É um jogo de pura compensação, diria.

Mas será correto brincar com um aparelho nuclear para evitar uma explosão?
Não será perigoso compensar os pedaços, os restos de casas nunca construídas com a emissão de outra bomba?
Eu já nem sei o que realmente é bom.

Se escrevesse um livro, talvez escrevesse um livro verídico, para não aumentar a minha loucura em relação ao fictício.

Mas, parando agora num momento de reflexão, entre um suspiro, apercebo-me de que, se assim fosse, esse livro não seria mais do que páginas em branco, virgens, sem maneiras de serem rompidas, escritas.

Sobre o que escreveria? Sobre o que penso todos os dias, quando acordo e me obrigo a sentar na cama para depois ficar a observar o armário e a sua podridão, lembrando-me da vontade de viver, que não tenho?

Sobre o modo como consumo um pão com manteiga, quando não tenho fome, apenas porque o tempo me parece extenso e interminável e não tenho nada nas mãos para fazer, nada que me estimule?

Sobre o modo como desejo que o relógio fosse mais pequeno e os números mais apertados, para que o tempo pudesse passar mais rápido?

Sobre o modo como, no banho, debaixo da água que ferve, me deixo petrificada, em pé, esperando que ela seja quente o suficiente para me fazer derreter e me levar com ela para os esgotos?

Sobre o modo como a cama me sabe bem, me permite esticar o corpo e deixá-lo imóvel durante vários minutos, para que, mais tarde, se torne dormente e já não se faça sentir, levando-me a mente também com a sensibilidade corporal, para um outro mundo que não considero mais correto, mas melhor.
Sim, é melhor. Pois é melhor viver platonicamente, do que nada viver, de maneira alguma.

Então, questiono-me também se será melhor, numa analogia com o pensamento anterior, respirar por uma máquina do que não respirar de todo, não importando o quão débeis ou deformados possamos estar, já nem nos parecendo com as formas de um humano.

"Não sei", - é a única resposta que consigo dar a mim mesma ultimamente.

Não pareço saber nada nos últimos tempos. Esses tempos que avançam e, à medida que o fazem, parecem levar mais pedaços de uma vida que eu queria desvendar e que trazem mais peças desta pessoa que eu não queria descobrir.

A verdade é que, embora essas novas peças de lixo que apanho em mim mesma, nessa alma suja e poluída, o sentido, entre outros sentimentos e coisas, esse já se foi de mim.

Ainda tão nova, pergunto-me quem será aquela velha pessoa na reflexão do espelho, que se encurva perante o caminho e que, desgrenhada e de dentes de um amarelo pintado pelo o tempo e pelo descuido, olha as rugas de uma vida que não viveu, os riscos de um cansaço justificado pelo vazio, um cansaço de fazer nada. De ser nada.

Se eu escrevesse um livro, ele seria assim. Um livro de nada.

Lau'Ra
 
Autor
Lau'Ra
Autor
 
Texto
Data
Leituras
924
Favoritos
0
Licença
Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
0 pontos
0
0
0
Os comentários são de propriedade de seus respectivos autores. Não somos responsáveis pelo seu conteúdo.