Contos : 

Até ao "Último Capítulo"... temos esperança.*

 
I



O sumptuoso iate cortava as águas de seda escura, num marulhar quase imperceptível - dir-se-ia que para competir em elegância com o frufru dos vestidos das damas, no animado Salão de Baile.

Acima disso, ouvia-se o marulhar das gargalhadas, o tinir dos cristais, e, sobretudo, a excelente música, tocada por uma pequena, mas aprumada orquestra...

De repente, num lapso de tempo que tanto poderia ser uma eternidade como um esvoaçar assustado de pálpebras, o caos instalou-se e o pânico alastrou, como água em turbilhão voraz. Palavras de ordem ouviram-se, acima dos gritos, sirenes gemeram, além do medo, e um ronco surdo, um ronco de morte, sobrepôs-se a todos os silêncios...

O iate teve o seu último estremecimento às 02:40 daquela noite fatídica, imediatamente antes de submergir nas águas de um oceano insensível e remoto.


II


Um a um, e em circunstâncias idênticas, quinze sobreviventes foram aportando a pequena ilha tropical, que a providência (aliás, essa seria a designação que lhe atribuiriam - Ilha da Providência) lhes achara como tábua de salvação. E, de facto, não seria mais que um tábua, nas suas dimensões e capacidades precárias, se não de sustentação, pelo menos de sustento: não havia água potável, não havia alimento vegetal, não havia caça, mesmo o mar que a cercava parecia ser estéril, já que nenhum peixe ou molusco viriam a encontrar nele, por mais longe que se aventurassem, a nado ou numa pequena embarcação feita de velhos e carcomidos pedaços de madeira. Esses pedaços de madeira, juntamente com ossadas humanas, provocaram, à altura da sua descoberta, um calafrio a cada um dos sobreviventes - e os olhares trocados choraram, logo ali, a sorte que os juntara e que lhes ditava a fatalidade de um fim próximo e doloroso: a morte a curto prazo, por inanição e sede...


III



Sede. A primeira e mais mortal provação. Dois dias na ilha, e já uma garra de morte apertava a garganta de todos.
Dentre os quinze, uma jovem delicada e magra, cujos pais pertenciam ao grupo restrito, era a que inspirava mais cuidados. Na tentativa, mesmo que antecipadamente vã de a salvar, pai e mãe lançaram-se ao mar na pequena embarcação, esperando poder alcançar o sítio do naufrágio, mergulhar e conseguir algo que suprisse, de algum modo, a necessidade premente de água e de nutrientes, da sua filha.
Partiram e voltaram, só para encontrar a filha já cadáver, e num estado tal, que, acrescido à dor da perda, lhes foi também fatal...

Na precária embarcação, porém, os outros doze encontraram um recipiente de plástico, vazio - não chegaram a saber se o que quer que contivesse, se tivesse perdido na viagem dos dois, ou se o já tinham achado vazio. Mas foi providencial e de vital importância: sobreveio, logo a seguir à morte dessa família, um enorme temporal e um manancial de águas jorrou sobre eles...
O recipiente, mesmo sem ninguém se preocupar com isso, na ânsia de sobrevivência imediata, sorvendo a chuva e banhando os corpos, encheu-se de águas de vida e de esperança...


IV


Suprida, pelo menos por tempo indeterminado, a necessidade de água potável, adveio a necessidade de alimento, tão desesperadamente procurado sem êxito.
A situação era desesperada, no dia em que o líder natural, um homem de têmporas prateadas, com cerca de 50 anos, propôs uma decisão controversa e quase macabra: cada um deles, um por dia, em ordem tirada à sorte e na esperança de manter o grupo vivo até ao eventual resgate, sacrificaria a mão esquerda, para alimento de todos. Seria pouco, mas, juntamente com a ração controlada de água de que dispunham, talvez o suficiente para manter os sinais vitais aos mais fracos e algumas energias aos mais robustos.

E assim foi. Um a um, todos foram dando o seu contributo em sangue, carne e ossos, que, esmagados pelos seixos da praia, eram divididos escrupulosamente por todos...

Ao décimo segundo dia, antes da última "refeição" (que calhara, por ironia, ao mentor do plano de último recurso), um navio ao longe pareceu notar os movimentos desesperados dos doze náufragos...

A água, essa, já tinha terminado no dia anterior, mas, de repente, o céu escureceu e a chuva veio testemunhar o resgate improvável...


Teresa Teixeira


*A minha versão de enredo para:


ÚLTIMO CAPÍTULO



No amplo salão, onde uma mesa para doze estava requintadamente composta, ouvia-se o burburinho das vozes, em respeitosa moderação de timbres. Uma breve gargalhada soou, algures, e todos os olhares se voltaram para a origem dela, com uma estranha atitude de quase consternação e ofensa: fez-se um silêncio pequeno, e, logo depois, as conversas e os rostos voltaram ao tom grave, quase austero, que a ocasião impunha.
Alguém deu voz à ordem de sentar – o jantar ia ser servido. Havia doze lugares à mesa, mas só onze convidados na sala – sete homens e quatro mulheres, todos de idades a rondar a meia vida. O anfitrião, como sempre acontecia naquelas reuniões, serviria a refeição, e só se sentaria no seu lugar, ao topo da grande mesa, quando entrasse com o manjar e o servisse a todos, um por um.

O candeeiro enorme, suspenso sobre a mesa dos onze convivas, pareceu oscilar levemente, concedendo aos cristais que lhe adoçavam a luz, refulgências de curiosidade e espanto. Todos se voltaram para a porta, estranhamente sentindo uma aragem fria, reminiscências de brisa marítima, um gosto quase salgado-seco na boca...

O décimo segundo conviva, erguendo na mão direita uma enorme bandeja, trazia o braço esquerdo enfaixado e seguro ao peito. Uma mancha de sangue vermelho vivo trespassava as gazes brancas, deixando perceber que o acidente fora recente. Mesmo assim, sorria, triunfante, quando entrou na sala. Depois, em silêncio, pousou a bandeja sobre a mesa: uma mão esquerda, cortada com o pulso, fumegava, ainda, na enorme travessa...

Todos bateriam palmas, se tivessem as duas mãos... mas, claro, a todos os restantes convivas, faltava já a mão esquerda, cortada ao nível do antebraço... restou-lhes olhar com respeitosa admiração o “último sacrificado”, e, com estranha e discreta gula, o “último manjar”...



FIM


 
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Sterea
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Enviado por Tópico
Nanda
Publicado: 30/06/2013 07:02  Atualizado: 30/06/2013 07:02
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 Re: Até ao "Último Capítulo"... temos esperança.*
Teresa,
Uma história trágica, arrepiante, roçando o macabro, mas, ainda assim, com um final não diria feliz, mas uma lição de vida para quem perde a esperança em dias melhores, por coisas insignificantes.
Beijinhos
Nanda