I.
Noite qualquer do mês de abril. No imenso salão, um enorme lustre balançava suavemente com a brisa, refletindo nas paredes refulgências dos pingentes de cristal.
Próximo à janela sentia a aragem da noite. Figura singular, idade indefinida. Corpulento, o abdome proeminente disfarçado sob o talhe perfeito das roupas. Trazia nos olhos algo peculiar. Um brilho diferente, que combinava com movimentos sutis dos cantos da boca. Incomum também o fato de jamais ter sido visto com a cabeça descoberta e sem indefectíveis luvas grossas e negras. Costumava manter o braço esquerdo dobrado, a mão enluvada enfiada no colete, quase totalmente escondida.
Ao ser avisado pelo serviçal que os convidados haviam chegado, teve um sobressalto de alegria. Esfregaria as mãos e até bateria palmas, se pudesse. Olhou para um dos quadros. Uma figura com mesmos traços físicos, a mesma característica das mãos, parecia sorri-lhe, num esgar sardônico. Dirigindo-se ao retrato, disse:
- Chegaram! Vamos ver o que temos desta vez...
II.
Algum tempo depois, olhava quase com ternura para as doze pessoas que acabaram de selar o pacto. Cada um deles já havia participado de outras empreitadas, mas aquela tinha um toque especial. Poder, riquezas e glórias oferecidas a cada um deles. Em troca, deveriam cumprir uma tarefa e manter segredo sobre tudo o que vissem e soubessem. Uma vez iniciado, o pacto não poderia ser rompido, devendo o participante comparecer a todos os eventos e obedecer rigorosamente às regras.
Foram escolhidos com cuidado. Oito homens e quatro mulheres. Idades diferentes, mas não discrepantes. O soldado era o mais velho. Um operário desempregado, um médico, um ator já em final de carreira. Um político expatriado de um país vizinho, um jogador de futebol sem expressão, um engenheiro de minas e um comerciante, completavam as figuras masculinas. As mulheres, uma atriz decadente, a viúva de um senador, uma advogada e uma empresária de pretensa grife de luxo, a mais jovem do grupo. Selado o pacto, proferiram solenes os juramentos.
Cada qual foi orientado que, no devido tempo, receberia um livro com instruções. O primeiro a ser sorteado seria anfitrião de um convidado. A cada vez que um deles fosse contemplado, haveria um jantar, com um anfitrião diferente, o qual servira o acepipe principal. Os não sorteados não estariam presentes, apenas os que já eram ricos e famosos ocupariam a volta da grande mesa de banquetes. Não poderiam abster-se de comparecer, nem recusar os pratos, sob pena de perdimento do que já auferiram e outros castigos terríveis.
Um roteiro a seguir. Sempre, o anfitrião seria o último a entrar no salão, somente trazendo o acepipe após todos os convivas estarem em seus lugares. A cada jantar, um conviva seria acrescentado à mesa até que o último anfitrião servisse os onze já contemplados e saciados em seus sonhos de riqueza.
III.
Dias se passaram sem nenhuma novidade. Até viu nos jornais que um jogador de futebol, já em final de carreira, recebera um convite para treinar uma seleção no Oriente Médio. Um contrato milionário, por vários anos. A realização pessoal e profissional para aquele homem. Um mês depois, outra notícia chamou a atenção.
Um político expatriado de um país da America do Sul fora reconduzido ao cargo. Uma assembleia nacional declarou que havia sido destituído ilegitimamente, determinando a volta. Reassumiu, conduzido nos braços do povo. Na cerimônia da posse, dava gargalhadas sonoras, sem se importar com o local e os presentes. Nem mesmo ficou um pouco consternado diante dos olhares de censura de raros membros da oposição.
Assim foi acontecendo durante mais de um ano. Pelos jornais tomava conhecimento que membro do grupo havia ficado rico e famoso. Pensava quando seria a sua vez de receber o que tanto ambicionava. Quase madrugada, pelo noticiário, viu que uma antiga atriz fora reconhecida pela Academia de Cinema pelos serviços prestados em prol da arte cênica. Já havia assinado contratos milionários com redes de TV e produtores de cinema locais e estava de malas prontas para embarcar para os EUA e Europa, onde mais contratos a esperavam.
Começou a prestar mais atenção quando a mulher disse que, apesar do acidente que sofrera, esperava poder ainda atuar. Daí reparou que ela tinha a mão esquerda amputada, à altura do cotovelo Fechou os olhos e puxou pela memória. O jogador de futebol, agora técnico famoso usava um agasalho grosso e luvas. O político que vira numa reportagem estava com o braço esquerdo numa tipoia que encobria a mão.
Procurou saber sobre os demais e constatou estarrecido. Todos eles haviam sido amputados quase da mesma forma, um a um. Relatava cada qual um tipo de acidente, mas ele sabia que não era bem isso. Alguns davam a alma, ele teria que dar a mão esquerda. Era a retribuição, a paga para receber sua riqueza.
Pensou:
- Para ficar rico e famoso, dou de bom grado até meu braço esquerdo inteiro...
IV.
Há cerca de um mês, ficou sabendo que a advogada fora convidada para um cargo importante no Alto Comissariado das Nações Unidas, com polpudos salários e possibilidades de ascensão em cargos mais altos. Também ela não mais exibia a mão esquerda. Era a décima primeira do grupo. Não restava mais ninguém, a não ser ele.
Na mesma semana foi procurado por um advogado que deu a noticia: um tio, do qual nunca ouvira falar, havia falecido e deixara-lhe toda a herança. Propriedades, obras de arte, investimentos e ações em um valor com o qual jamais sonhara. E assumiria títulos nobiliárquicos. Os contatos seriam feitos em uma cidade do litoral e recebera as passagens e reservas. Chegara a sua vez de ser o anfitrião.
Já no resort, ainda no grande hall, finalmente recebeu o livro de que ouvira falar. Um alfarrábio vetusto, em couro e metal entalhado. No pergaminho da capa, uma fina iluminura medieval do mais puro ouro. Enfim! Logo mais receberia também o premio. Esfregou as mãos de contentamento, mas logo em seguida parou. Bem sabia que seria a última vez que faria isso.
A brisa marítima invadia o hall. Ali mesmo em pé, começou a ler. Arrepiou-se. Então era esse o tal segredo. Uma onda de terror e desanimo abateu-se sobre seu entusiasmo. O peito palpitava e a boca ansiava por saliva. Desabou em uma poltrona. Pelas grandes janelas a brisa envolveu seu corpo. A maresia penetrou na garganta, deixando um gosto salgado na boca ressecada.
Admirou-se como os outros tiveram tanta coragem para consumar tal ato. Alguns mais de uma vez. Duvidou de si mesmo. Teria coragem para tanto? A visão turvou-se, o estômago embrulhado seguido de náuseas. Já se havia imaginado sem a mão esquerda e até se acostumara com a ideia. Pesquisou sobre próteses e achava que poderia viver muito bem assim, sem a mão esquerda, mas com fama e dinheiro.
Pensando na riqueza que teria, aos poucos, foi recuperando a calma. Sentiu comichões no braço direito. Esfregou-o com a mão esquerda como a se despedir. Pensou:
- Bem, se posso dar meu braço esquerdo para tantas riquezas, por que não poderia também servi-lo numa salva e comê-lo com os demais? E só vai ser uma vez. Seria assim como a última refeição, um “último manjar”...
V.
No amplo salão, onde uma mesa para doze estava requintadamente composta, ouvia-se o burburinho das vozes, em respeitosa moderação de timbres. Uma breve gargalhada soou, algures, e todos os olhares se voltaram para a origem dela, com uma estranha atitude de quase consternação e ofensa: fez-se um silêncio pequeno, e, logo depois, as conversas e os rostos voltaram ao tom grave, quase austero, que a ocasião impunha.
Alguém deu voz à ordem de sentar – o jantar ia ser servido. Havia doze lugares à mesa, mas só onze convidados na sala – sete homens e quatro mulheres, todos de idades a rondar a meia vida. O anfitrião, como sempre acontecia naquelas reuniões, serviria a refeição, e só se sentaria no seu lugar, ao topo da grande mesa, quando entrasse com o manjar e o servisse a todos, um por um.
O candeeiro enorme, suspenso sobre a mesa dos onze convivas, pareceu oscilar levemente, concedendo aos cristais que lhe adoçavam a luz, refulgências de curiosidade e espanto. Todos se voltaram para a porta, estranhamente sentindo uma aragem fria, reminiscências de brisa marítima, um gosto quase salgado-seco na boca...
O décimo segundo conviva, erguendo na mão direita uma enorme bandeja, trazia o braço esquerdo enfaixado e seguro ao peito. Uma mancha de sangue vermelho vivo trespassava as gazes brancas, deixando perceber que o acidente fora recente. Mesmo assim, sorria triunfante, quando entrou na sala. Depois, em silêncio, pousou a bandeja sobre a mesa: uma mão esquerda, cortada com o pulso, fumegava, ainda, na enorme travessa...
Todos bateriam palmas, se tivessem as duas mãos... Mas, claro, a todos os restantes convivas, faltava já a mão esquerda, cortada ao nível do antebraço... Restou-lhes olhar com respeitosa admiração o “último sacrificado”, e, com estranha e discreta gula, o “último manjar”...--
" ...descrevo sem fazer desfeita,
meu sofrer e meus amores
não preciso de receita
muito menos prescritores."