Poemas : 

Amanhecer

 
Um dia julguei que a noite era tão arrogante como um pedaço de uma carta ilegível. Um dia julguei-a castradora, tão longa e redutora, fazendo-nos encolher perante a sua presença, fazendo-nos pequenos, tão pequenos que nos engolimos a nós mesmos na nossa tristeza de alma.

Sabe-se que a noite traz a nostalgia. Sabe-se que a noite desperta em nós coisas que não desejamos que sejam despertadas.
A noite vem devagar e, numa força invisível, traz à mesa, em frente dos nossos corpos encurvados e pendurados sobre ela onde se apoiam os cotovelos do cansaço, os segredos que quisemos enterrar, as mágoas que quisemos apagar, enfim...traz à mesa tudo o que não nos foi possível destatuar.
E é por isso que a noite se destina aos loucos e aos poetas. Ou, num conjunto de palavras de descrição mais adequada, aos poetas loucos. Que loucos poetas!

Os poetas são aqueles que não se deitam às dez da noite, prontos e fechar os olhos e não deixar que todos aqueles sonhos destruídos e promessas de um passado já ido venham atormentar.
Os poetas, por sua vez, são aqueles que se alimentam de insónias, que se ajoelham perante essas mesmas mesas de desgostos, cobertas de nomes que já se não se pronunciam e de cenários que já caíram, e se curvam sobre a sua própria desgraça, pegando nela, deixando-se consumir. Os poetas são os que pegam em todo o tormento para criar poemas de beleza triste.

São aqueles que escrevem palavras com o intuito de nunca as ler e não encontram meios de compreensão para entender quem aplaude tais pedaços de palavras sem sentido, que se entrelaçam numa história de terror interior. Os poetas perguntam quem poderá achar beleza num monte de ódio expresso em frases de nada, frases de confusão, frases do que já foi consumido pelo tempo, mas não desvaneceu.

Na noite vivem os loucos. E quem serão os poetas, para além do reflexo da sua própria loucura?
São o alimento da noite, poder-se-ia dizer. Ou seria até aceitável entender, que a noite é quem os sustenta.

Mas a noite não é assim tão má. Em sim, algo sabe a doce. A doce luz do levantar do sol, o encadear de sabor a esperança, após uma noite vendados em plena escuridão.

De manhã, sentada na varada sobre as colinas, via o sol nascer enquanto a noite era lentamente esborrada. E então apercebi-me que adormecia em mim o poeta para despertar a criança que viu os sonhos morrer, deparando-se no processo de criação de outros novos que serão destruídos, mas que ainda não se sabe. Porque o amanhecer é subtil, porque o amanhecer é leve, é inocente, é silencioso, não nos diz que os sonhos que traz de bagagem serão, em pouco tempo, pó.
Sim, o amanhecer é puro. Tão puro na sua grande corrupção de alma alheia.

A noite é para os loucos, o amanhecer é para aqueles que um dia o virão a ser. Para os infantes da demente loucura! E a noite é honesta, é pesada, mas a manhã, essa é corrupta.

Lau'Ra
 
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Lau'Ra
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