Contos : 

Entardecer

 
E a flor da morbidez crescia-lhe entre as lembranças,gestando galhos,arbustos,que nele se enramavam,envolvendo-o na teia opaca do desespero vertiginoso,aliviado pela longa contemplação do mar,sempre ao final da tarde,quando as lembranças do que fora e do que nunca tinha sido colidiam com a brancura da espuma,próximo das rodas da cadeira .
Inútil, palavra amuleto que se lhe introduziu na mente,fixada pelas recordações atrozes,dos dias antigos,cada vez mais antigos,vividos em tantas terras do seu vasto mundo,recordações que colidiam entre si ,esfacelavam-se , por vezes aflorando sob tênues e vincados sargaços,trazidos pela onda vespertina tão próxima dos pés .
Hoje perseveravam imagens das mulheres de sua vida tola, de repente seres perversos e abissais,eficientes na criação do medo turvo e indizível ,porque fugia-lhe ás palavras,tal o despedaçado tronco de coqueiro insistindo em aportar , rechaçado na determinação suave das pequenas ondas da corrente , que refletiam um entardecer quase agonizante ,memórias do tão pouco feito e expresso , das decepções em surdina e aos gritos .
Agora , tão próximo da areia, impotente em descalçar os sapatos e banhar seus adormecidos pés na frieza atlântica ; o filho em fingida desatenção ,sentado sob o terraço , no fumar preguiçoso e obeso, a contemplar volutas e espirais ascencedentes , na expectativa do aceno para levá-lo á casa, onde seria encarado pelos seus fantasmas , flagrados e retratados no preto e branco já cinqüentenário , pendentes das frias paredes , rostos que nada diziam , em vida já assumidos pela imobilidade dos retratos, porque interiorizaram os seus gritos ,suas risadas , sua passagem pela velha casa de veraneio , isolada e destacada no alto da falésia , o mar beijando - lhe os pés em servidão permanente .
Então , que as lembranças adquirissem vida própria , que se animassem a penetrar-lhe
os buracos de sua cabeça , tal um ectoplasma transitando ás avessas , do mundo dos
vivos ao reino da mente encurralada e sombria , na hora tênue e esgarçada entre o final
da tarde e o anoitecer avarandado , sob as luzes do terraço. .
A solidão queda-se sobre si mesma .O vento esfria o mundo e varre os sargaços apodrecidos ao redor . Percebeu suas lembranças na tonalidade opaca e no calor que sempre tiveram ; seu passado requentado e indigesto sobre a mesa da sala .
O filho atendeu-lhe o aceno , na solicitude quase aflita , na falta de jeito pela falta de jeito de quem está , por acaso , com quem nunca esteve em corpo e mente ao seu lado e também por acaso é seu pai . Conduziu-o pela calçada , enquanto conversavam sobre a incrível destreza das gaivotas nos seus vôos rasantes , ao cair da tarde.



andrealbuquerque

 
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andrealbuquerque
 
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Enviado por Tópico
Felipe Mendonça
Publicado: 01/06/2013 15:06  Atualizado: 01/06/2013 15:06
Usuário desde: 01/12/2011
Localidade: Rio de Janeiro
Mensagens: 541
 Re: Entardecer
Um conto perfeito. Adorei. Grande abraço, André.


Enviado por Tópico
Sterea
Publicado: 09/06/2013 11:10  Atualizado: 09/06/2013 11:10
Membro de honra
Usuário desde: 20/05/2008
Localidade: Porto
Mensagens: 2999
 Re: Entardecer
A sua escrita é sempre produto refinado, trabalho cuidado de matéria-prima valiosa, diário de bordo de viagens insuspeitáveis, acredito (ou suspeitáveis, e acredito também...).

E (fora um ligeiro desconcerto na colocação das vírgulas), de uma qualidade literária digna de nota, digo eu, que só sei a música de cor...


Um beijo.


Teresa