"(...)D. Miguel tossia imenso. Sentia-o cada vez mais debilitado à medida que mergulhava nas memórias do Passado. No entanto, prosseguiu …
- Alembro-me, certa vez, já em Roma, esperava-me sua Santidade na Basílica de S. Pedro, de encontrar um pedinte nas escadarias da Igreja. Todos lhe passavam ao largo com certo ar de desdém. Levava em mim vestes de cardeal.
Parei, estendi-lhe a mão …
- Alevantai-vos!
- Porquê?! Respondeu.
- Pela dignidade Humana! Na Vida, pior que cair é ficar na queda. Disse-lhe.
- Mas esta é a Vida que Deus me deu, Excelência.
E sou feliz! Respondeu.
Fiquei admirado. E alevantando-se à força do meu pulso, perguntou …
- Sois Nobre Senhor! Porque falais a um pedinte?!
-Não! Respondi-lhe de lágrima no olho. Sou vosso irmão! É essa a única Nobreza deste velho Coração. Intima Essência de Ser Cristão!
Fixando-me nos olhos, permaneceu num Silêncio profundo. Era um Mágico Silêncio! Um Silêncio que activa o Fogo Interno!
Quebrando esse Silêncio, perguntei olhos nos olhos …
- Quem sois Vós Pedinte?
- Alguém senhor, Alguém! Respondeu.
- E vós senhor, quem sois? Perguntou.
- ninguém, Pedinte, ninguém! Respondi.
- Mas Sois um Cardeal!!! Afirmou.
- Não, Senhor! Sou antes,
um pobre pedinte de Portugal, sem Alma,
com vestes de cardeal! Refutei.
De repente, ante à admiração geral, um imenso restolhar! Eis que poisa sobre o Homem uma Pomba Branca … a Pomba da Saudade! O Espírito de Deus! Vi naquele instante, estampado no Rosto do Pedinte, o Rosto de Cristo! Perplexo, caí de joelhos a seus pés! Invertiam-se os papéis! Recordo a voz do silêncio que de imediato se assentiu em todo o espaço! Todo o movimento da Praça de S. Pedro ficou preso num passo d’impasse ao observar o meu gesto. Como se as Gentes entendessem a profundidade daquele intimo momento. Rasgava-se na Terra a triste divisão de classes, a dolorosa separação d’Almas. Baixei a cabeça. Emocionado, retirei-me às pressas da presença daquele Homem que, docemente me deu a mão e ajudou a levantar. Sentia-me profundamente perturbado. Entrei na Basílica de S. Pedro, ainda em construção, e ante incrédulos olhares, prostrei-me no chão aos pés da cruz, como se fosse um morto. Sem nada, sem Ninguém, verdadeiramente despojado, consciente da minha íntima condição de pedinte, da minha verdadeira identidade … afinal eu era ninguém!
(silêncio …)"
Ricardo Louro
IN "Saudade de Sua Eminência
o Cardeal-Viseu" do mesmo autor.
No caminho da Vida, há momentos em que nos é dada a oportunidade de verdadeiramente nos confrontarmos com a incapacidade de controlar a Vida. D. Miguel da Silva, o Cardeal Viseu, é disso testemunha. É aí que podemos abrir mão do excesso de afirmação do nosso Plutão e temos a possibilidade de fazer Processos de humildade interior e exterior, eis a Evolução, a expansão da Consciência!
Ricardo Maria Louro