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Sobre a poesia (Juan Gelman)

 
Tags:  AjAraujo    poeta humanista  
 
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haveria um par de coisas por dizer
que não é muito lida por ninguém
que esses ninguém são poucos
que estão todos preocupados com a crise mundial e

com o assunto de comer a cada dia trata-se
de um assunto importante eu me lembro
quando tio João morreu de fome
dizia que nem se lembrava de comer e que pra ele não tinha problema

problema veio foi depois
não havia dinheiro para comprar caixão
e quando finalmente o caminhão municipal passou para levá-lo
tio João parecia um passarinho

o pessoal do caminhão olhou para ele com desprezo e com desdém
murmuravam
que eram sempre molestados
que sendo gente eles enterravam gente e não
passarinhos como tio joão/ especialmente

porque o tio foi cantando piu piu a viagem inteira até o crematório municipal
e sentiram-se desrespeitados e estavam muito ofendidos
e quando davam-lhe um tapinha pra calar a boca
o piu piu voava pela cabine do caminhão e eles sentiam que ouviam um piu piu na cabeça tio

João era assim adorava cantar
e não via por quê não cantar depois de morto/
foi para o forno cantando piu piu as cinzas saíram e ainda deram uns pios
os companheiros do municipal se entreolharam com os sapatos cinzentos de vergonha bem mas

voltando à poesia
os poetas passam muita dificuldade
não são muito lidos por ninguém esses ninguém são poucos
o ofício perdeu o prestígio para o poeta está cada dia mais difícil

conquistar uma linda namorada
ser candidato a presidente ser patrocinado por um mecena
que um guerreiro faça façanhas para serem cantadas
que um rei lhe pague cada verso com três moedas de ouro

e não se sabe se é porque acabaram as namoradas, os mecenas, os
guerreiros os reis
ou simplesmente os poetas,
ou foram as duas coisas e é inútil
esquentar a cabeça com uma coisa dessas

bonito é saber que a gente pode cantar piu piu
nas horas mais estranhas
tio João depois de morto eu agora
para que me queiras

* Juan Gelman (1930), jornalista argentino. Trabalhou em diversas profissões em seu país. Entre elas caminhoneiro e redator de Crisis (Buenos Aires). Participou ativamente da esquerda argentina nos anos 60-70. Devido à pressão da ditadura militar, acabou exilando-se na Europa de maneira turbulenta regressando a seu país somente em 1988. Poema traduzido por Léo Gonçalves.

Sua obra é marcada pelo cotidiano, um humor profundamente contraditório, entre lágrimas e gargalhadas, além de um constante compromisso com a revolução e com a denúncia. Obra Poética: Violín y otras cuestiones(1956), El juego en que andamos(1959), Velorio del solo(1961),Gotán(1962), Los poemas de Sidney West(1969), Cólera buey(1965 y 1969), Fábulas(1970), Relaciones(1973), Hechos y relaciones(1980), Si tan dulcemente(1980), Citas y comentarios(1982), Hacia el sur(1982), Anuncianciones(1988), Carta a mi madre(1989).
 
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AjAraujo
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