Antília era o seu nome, quanto a mim ainda julgo ser o Luís. Naquele tempo vivíamos longe da cidade: ela em casa dos pais e eu numa casa contígua que alugara a um simpático casal de proprietários que dispunham de variados recursos na região. Tinha acabado de me estabelecer como contabilista numa sociedade em nome coletivo cuja prosperidade me prometia uma vida sem grandes atribulações. É certo que iria cair no ardil que formata funcionários sem ambição, mas também nunca sonhara comandar nenhum mundo que não fosse, aquele, que me era imediato. Quando numa tarde, regressei um pouco mais atrasado a casa, reparei que no interior da minha caixa de correio se encontrava um catálogo empacotado cuja cor pronunciava um tipo qualquer de publicidade agressiva. Já de sobreaviso, rasguei desajeitadamente o plástico e ao avistar o conteúdo daquele, agora posso dizê-lo, “livrinho” acusei logo um sentimento que na altura não soube definir. Pratos, saladeiras, tigelas, boleiras, talheres e outros utensílios vivificados de garridas cores fizeram surgir em mim um calafrio imediato que se verbalizou num “isto não é para mim”. No plástico destroçado, um nome diferente do meu confirmou as minhas suspeitas. Antília…e assim começou tudo.
Quando fui devolver o conteúdo semi-destroçado ao endereço correto, apresentei também, assim o julgo, de um modo correto, as minhas desculpas pelo fato de não ter reparado no engano do carteiro. Culpas partilhadas com um cúmplice desconhecido. Quem apareceu à porta, depositou em mim um olhar desconfiado que se foi esbatendo à medida que eu ia falando. No final um sorriso aberto de mãe adotiva. Estamos falados. Não foi nesse dia que a vi. Mas agora existia aquela convivência formal que se estabelecera por um incidente casual. Daí, que se cumprimentava a mãe era conveniente saudar o resto da família. Não me deterei com mais rodeios. Eram quatro pessoas ao todo. A senhora Emília, mãe, costureira, bordadeira e católica fervorosa; o senhor Carvalho, cuja profissão e ou seu primeiro nome ainda hoje não pude descortinar; o jovem Mário, que estudava na universidade da cidade mais perto (que como já foi dito não era assim tão perto); e finalmente Antília, que querem que eu diga, o centro de todos os espaços, de todos os tempos e de todas as vidas.
Nesse mesmo dia, ainda tive tempo de me dirigir a casa dos proprietários pagar a mensalidade e fui testemunha de uma hospitalidade natural que muito me desembaraçou. Até me atrevi a dizer que já tinha sido testemunha da simpatia da vizinhança.
- Gente perigosa, senhor Luís. Mesquinha até dizer chega. – disparou a senhoria. – Vai-me desculpar o atrevimento, mas o senhor parece-me tão correto e ainda jovem… Não me julgue de modo diverso, apenas pretendo alertá-lo para a possibilidade de uma desilusão. Gente incapaz, muitas conversas em casa e na igreja, marido sem mando, filho fora e filha bonita…Em suma, condições propícias para a germinação de vaidades nas mulheres. E quando não há homens a sério dá nisto.
- Mas a moça, é realmente muito bonita – ajuntou o marido. -Já a mãe também o era.
- Não falemos mais nisso.- Disse com enfado a velha senhora que apercebendo-se do despropósito no tom da última sentença, remendou dizendo: - Prometa-me que será prudente senhor Luís.
De modo falso acedi. Naquele momento dei razão ao primeiro ser humano que afirmou que nunca nos devemos confiar às primeiras impressões. E não estava a falar da gente da casa contígua à minha. Regressei a casa, ao entrar na porta ocorreu-me ao pensamento a possibilidade da existência de uma micro-câmara que estivesse a filmar todos os meus movimentos (até olhei para o teto do vestíbulo). Depois fui-me deitar e de tão cansado que estava teria rapidamente adormecido se não me começassem a soar aos ouvidos aquelas palavras do velho imprudente “mas a moça, é realmente muito bonita”. Como seria ela, uma feiticeira de beleza cruel, cascavel suburbana de encanto exótico, cozinheira requintada de contabilistas conformados. Um, dois, três…cem e adormeci.
Sabem qual foi a primeira coisa que fiz quando saí do emprego? Sim, adivinharam. Tinha de a conhecer. “Mas como?”- Pensei. A discrição, que num caso destes é aconselhável exprimir, só se torna fácil de exibir, depois do primeiro olhar, se houver desilusão. Mas quando um coração desacompanhado avista um milagre da natureza, jamais poderá ousar pensar em ocultar o que sente dissimulando. Assim o pensava. Quando a vi deslizando pelas escadas em direção à rua confirmei-o. Não era apenas um corpo magnificamente proporcionado e feminil. Tinha no rosto aquela chama ardente cuja cor nunca conseguiremos explicar, mas que nos tinge os sentidos de vontade de poder. Não pensei mais na discrição nem em descrição. Sem dissimulações, tinha de lhe confessar a minha devoção, a minha vontade de a servir. Sim já estava vencido…
No dia seguinte, ébrio de paixão, acordei três horas mais cedo que o habitual. Espreitei por uma frincha da janela para a casa de Antília. Teria eu a sorte de a ver sair de manhã. Eram apenas seis horas. Um vento forte soprava rasteiro pelo chão coberto de folhas caídas. Outono do meu contentamento, lufada de vida que abalava o meu horóscopo sentimental. Se estava desnorteado não o sentia naquele momento. O certo é que fiquei as três horas junto da janela esperando que ela aparecesse. Não apareceu.
Encaminhei-me à pressa para o escritório. – Não puseste hoje a gravata? – disse-me o Martins com cumplicidade fraternal.
Assegurei-lhe que me sentia desconfortável com uma possível amigdalite e que talvez fosse melhor prescindir do referido acessório por um ou dois dias. Acho que acreditou. Nunca houve um dia em que por tantas vezes me tenha enganado nos processos contabilísticos. Todavia, estava munido de uma tenacidade positiva que me permitiu encarar com bonomia todas as falhas do dia. Quando saí do escritório, atravessei a rua junto a uma loja de eletrodomésticos pacata e aparentemente sem clientela. Como estava a pensar comprar um aspirador, optei por entrar no estabelecimento comercial. Ao balcão encontrava-se uma velhinha muito rubicunda e curvada, bastante magra mas cuja postura corporal revelava um estranho equilíbrio. Querendo exibir simpatia, abandonou a tarefa a que se dedicava e sem largar a caixinha que iria porventura ainda arrumar, fixou em mim os seus olhos melados e enterrados. Nunca poderei esquecer a ternura que me invadiu quando dei de caras com aquela mulherzinha escarlate de caixinha na mão sorrindo para mim. Dois minutos mais tarde descobri que às vezes o destino decide-se por preambular as mais fortes emoções, com doses doces de pura simpatia.
- O que deseja menino?- disse a estacazinha atarracada encarnada.
- Desejava ver os aspiradores.- confidenciei volteando o pescoço como se desde logo quisesse começar a ajudar na tarefa de os encontrar.
- Isso é fácil menino. Faça o favor de me acompanhar.
Segui a velhinha e pude mais uma vez apreciar a novidade do estranho equilíbrio que os seus passos afetavam. Aquele lampiãozinho curvado mostrou-me toda a gama de aspiradores inventados e por inventar. Sorria sempre que falava no preço, como se cada sentença atestasse a maior das generosidades. Escolhi o azul (a marca era o menos importante).
-Antília. Antília! Ah estás aí! Vai buscar este modelo ao armazém que é para este senhor levar.
Não pude acreditar! Era ela! Já sabia onde ela trabalhava. “Agora já sei qual a causa do equilíbrio!” pensei para os meus botões desoprimidos da gravata. Quando ela voltou com a caixa, tentei despachar simpaticamente a velha senhora que não se calara durante todo esse tempo. Só me lembrei de a ter ouvido pronunciar a palavra “garantia” umas poucas de vezes e quanto ao resto: “tábula rasa”.
- Obrigado menina. Desculpe a pergunta, mas a menina não mora na Rua das Cordas, logo abaixo da alameda daquelas árvores sem folhas?- disse-lhe eu precipitadamente.
Riu-se. Afirmou que na estação em que nos encontrávamos havia, na terra, poucas árvores de folha perene. E com um prazer inconsciente da tortura que me provocava disse que era verdade o que eu lhe perguntara. Afirmou ainda que já sabia quem eu era: “O vizinho simpático a quem ainda não tivera a oportunidade de agradecer a delicadeza da devolução do catálogo”.
- Ora essa. Não precisa de agradecer. Só cumpri a minha obrigação.- Disse-lhe eu com jactância.
- Ainda existem jovens simpáticos!- Lembrou a velha com um sorriso inteiramente genuíno.
- Chamo-me Antília. E o senhor?
Queria saber o meu nome! Estendeu-me a mão morena e delicadamente modesta com um desembaraço sensual e fez aquele meio sorriso que só as mulheres bonitas são capazes de apresentar na sua completa plenitude.
- Eu chamo-me Luís. Luís Gonçalo.
- Tem um nome bonito. Um dia tem de aparecer lá em casa e conhecer toda a família. É sempre bom cultivar a boa vizinhança.
“Que desenvoltura, que agilidade e vivacidade naquela voz e o olhar, meu Deus, quantas promessas sugeria!”
- Aparecerei com todo o gosto. Então até depois.
- Então, não leva o aspirador menino? – sugeriu a velha ressuscitando subitamente do nada.
- Ah, sim! Que cabeça a minha.
Agradeci o lembrete. Despedi-me com deferências das duas mulheres e saí enlevado e sonhador, satisfeito com a minha primeira vitória. Já na rua ainda cheguei a ouvir:
- Simpático, mas desnorteado.
- Sim, um pouco desnorteado…