Contos : 

A Serra

 
Um olhar confiado que abrange um longo espaço, não consegue abarcar todo o esforço que é necessário usar para alcançar com os pés o que os olhos já conquistaram. Aconteceu-me assim num dia de sol. Olhei através da janela e, num repente de entusiasmo viajei até à serra do meu horizonte de todos os dias de menino. Era uma formação amigável e regular -não muito alta -, com modificações serenas e esperadas que se colavam com a minha harmonia infantil. Nesse dia estava sozinho, o sol, que já me chamara antes, volveu com as suas ondas de calor e apeteceu-me sair. Escolhi um livro que, juntamente com um pequeno lanche, acabei por colocar no interior de uma mochila azul. Inteirei-me dos horários do autocarro regular, cujo itinerário englobava a paragem do sopé da serra e descobri que ainda ia a tempo de “apanhar” o autocarro das dez. Dez quilómetros foi o espaço que percorri naquele velho veículo alemão, cujo barulho do motor me lembrava o desespero dos doentes crónicos dos pulmões. Saí e a odisseia que a confiança dos meus olhos supusera fácil, tinha acabado de esbater em solavancos parte da minha boa disposição. Mas não me deixei abater, afinal estava apenas no início. Seriam ainda as minhas pernas que teriam de subir a serra pela estrada alcatroada e cheia de curvas fechadas; sinuosidades que escondiam em parte o pouco que se tinha andado e o muito que ainda faltava. Estranha coincidência esta mania da natureza que se senta num dos lugares marcados para o espetáculo da minha confusão. Cheguei por fim ao ponto mais alto do terreno; coisa estranha o facto de agora olhar em volta e não conseguir enxergar a minha casa. Ainda busquei descortinar a fina linha da estrada nacional mas se a achava logo adiante a perdia por trás de uma colina. Ainda a achei de novo por mais três vezes, mas outras tantas a perdi à luz de um sol alto, de uma brancura prateada que julguei artificial. Tinha fome e sede. Bebi muito e comi menos do que aquilo que pensava fazer. Procurei uma árvore frondosa que logo encontrei abrigada do vento por um grande penedo com forma de castanha amassada. Estendi uma toalha e deitei-me à sombra da árvore. Apenas escutava os pássaros e o vento tímido. É certo que havia outros barulhos menos definidos, mas de tão ténues que eram, quase que julguei que não existissem. Tirei da mochila o livro que trouxera e retive-me alguns minutos com o olhar entrecortado entre a encadernação e a copa larga da árvore. Por fim resolvi-me a ler. Era um livro de poucas páginas que falava de uma nova teoria sobre os vários estádios de desenvolvimento psicológico de um ser humano. Começava por apresentar os pontos-chave da teoria e só depois explanava mais detalhadamente, num tipo de texto muito formal, a lógica sequencial do pensamento do autor. Enquanto entrava cada vez mais no raciocínio do autor, reformulando algumas ideias que há tempos atrás julgara construções fidedignas, fui-me deixando convencer pelas ideias do autor. Eram quatro horas da tarde quando acabei o livro. Levantei-me e reparei que tinha os cotovelos levemente tingidos de verde. A natureza tinha-se manifestado, conspiradora, mais uma vez em mim. Era tempo de regressar a casa. Não conheço ninguém que aprecie o paladar dos trajetos inversos. E eu também não gostava. Comecei a descer a encosta sem reparar que deixara a minha toalha estendida debaixo da árvore. Só me lembrei desse facto quando, a meio do caminho, parei um pouco para refrescar a boca com um gole de água que já estava morna. Se voltasse para trás já não teria tempo de “apanhar” o último autocarro do dia, mas diabos, se voltasse lá no dia seguinte o mais provável seria algum pastor viandante dela já se ter apossado. Era uma decisão difícil e incómoda. Optei por recuperar a toalha. Os dez quilómetros do autocarro pesariam sobre as minhas pernas culpadas. Regressei ao local onde passara a tarde, mas qual não foi o meu espanto quando, debaixo da frondosa e maciça árvore encontrei, em vez da tolha, um bilhete de autocarro para o regresso a casa no primeiro horário do dia seguinte. Surpresa é uma palavra demasiado branda para pintar tudo aquilo que senti. Olhei a toda a minha volta, reparando em todos os pormenores que nesse dia não tinha notado: uma casa branca de telhadinho inacabado, um espantalho em bom estado de conservação e de costas espadaúdas e uma igrejinha pequenina voltada para poente com um canteiro de flores à volta. Mas a minha toalha, realidade concreta daquele dia, essa mesma toalha que cuidadosamente desdobrava sempre do mesmo modo atabalhoado, ela tinha desaparecido. Havia que voltar para casa e já tinha tomado essa decisão quando – caros leitores a vossa surpresa será sempre uma fração própria da minha estupefação – a árvore, com voz de catequista de meia idade, me disse: - Julguei que fosses fazer aquilo que te compete! Não vais recuperar a tua toalha?
Não quis acreditar, mas ao ouvir repetidas as mesmas palavras comecei lentamente a deixar de duvidar até que me atrevi a dizer:
- Não compreendo o que se passa. Deixei aqui uma toalha que desapareceu de um momento para o outro, num abrir e fechar de olhos, sem que me tivesse ausentado muito tempo. Por outro lado é a primeira vez na minha vida que, palavra de honra, oiço uma planta que fala. Que mal eu fiz para merecer semelhante desventura?
- Em primeiro lugar, não tens razões para te queixares da tua sorte. O dia está ameno, ainda existem umas boas três horas de sol pelo que tens mais que tempo para procurar o teu pano. E mesmo que sejas desafortunado nos teus intentos ainda te sobra o bilhete do autocarro que te recompensará amanhã pelos cansaços que as tuas buscas de hoje te possam causar. – assim me respondeu a árvore em tom complacente.
Foi então que respondi: - Mas eu não quero saber do bilhete para nada. Só sei que ainda hoje tenho de chegar a casa. Aliás já não quero saber de toalha nenhuma, vou-me pôr a caminho enquanto é dia e que dia mais azarado – terminei eu com aspereza.
A árvore indiferente respondeu-me: - Olha para os teus cotovelos.
Olhei e estavam tingidos como já havia notado. – Estão tingidos e depois? – disse com ar de desafio.
- Onde os tingiste? – perguntou sobriamente a árvore.
- Naturalmente na relva durante as minhas mudanças de posição ao longo da leitura – respondi convencido da conformidade dos factos. – A toalha não era suficientemente larga - disse procurando deste modo justificar ainda mais a ocorrência.
- Olha bem para ti- disse-me a árvore. – Toda a tua roupa está suja pela erva que esmagastes com indiferença. Estivestes grande parte da tarde oprimindo as minhas raízes profundas e bafejando com a tua respiração de assombrosa novidade as folhas desta minha estação. Caminhastes até aqui sozinho. Comestes, deitaste-te, lançaste-me uns olhares furtivos, mas depois optastes pelo livro e por fim levantaste-te e partistes sem uma única palavra. Nem sequer um obrigado. Se ias sujo e não o notaste foi porque a tua atenção estava mais voltada para ti do que para o mundo que te rodeava. Sim, reparastes na toalha. Mas porque era a tua toalha. Verificastes que tinhas os cotovelos sujos porque precisastes deles para te levantares e para colocares a mochila. Irias por certo também reparar na tua roupa suja quando te sentasses no banco confortável do autocarro e pousasses o livro no teu colo. Sim, fiquei-te com a toalha, mas ainda muito antes de tu te teres levantado. Quando lias o capítulo dedicado à adolescência a minha primavera invejou-te e afastou da terra de mansinho a toalha que te protegia dela. Pouco depois a relva que me acompanha tingiu as tuas calças e camisola com um verde fresco que teve o ardor de um beijo. E tu lias, lias e lias. Nem uma palavra, toda a sombra que as folhas, minhas tenras filhas, te deram foi amor desbaratado. Coitadas, ao menos ficaram a saber que o calor terno e constante apenas vem da parte de cima do mundo. Por fim foste-te embora, voltaste-nos as costas e nem uma palavra. Bem agora já não importa mais nada. Ainda queres a toalha?- perguntou a árvore cansada.
Depois de todas estas palavras, só tive forças para responder: - Sim, quero muito e perdoa-me.
Desci a encosta sem pensar, olhando à minha volta para tudo quanto encontrava e percebi que era possível conciliar os passos que damos com o caminho que percorremos.
Cheguei a casa já noite e ao deitar-me olhei pela janela procurando vislumbrar aquela serra onde havia aprendido a olhar e a andar. Agora, estranhamente, já não precisava da luz do sol para perceber que aquela serra – ao contrário daquilo que pensara de manhã – iria existir sempre no meu coração. Não seria a noite que ma ocultaria nem o dia que ma revelaria.

 
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fcsguimaraes
 
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