Em passo lento e entorpecido , cruzo a sala e abro a porta ao homem moreno,ainda jovem,de pele curtida e enrugada pelo sol que nos protege e tortura..Seu olhar trai a desconfiança dos brancos ,milenar e bem fundamentada; baixa estatura , longa barba desalinhada ,cabelos negros,.revoltos e encrespados de areia,da qual enfrentou uma tempestade para chegar até aqui.O olhar sondante ao redor,detém-se na grande caixa de madeira no centro da sala. Tento recordar aquele rosto ,mas o ópio anuviou-me a tristeza e a memória , no cérebro sempre vacilante em evocar fisionomias.
Encara-me ,o rosto crispado e mais enrugado pela dúvida .Percebo-o pequeno,mas não passa fragilidade para mim.A túnica está bege de areia e longas jornadas sob o sol,olhos amendoados circundados pela estranha pintura de sua tribo.Devolvo-lhe o olhar inquieto .Agora sorri com os olhos e comprime os grossos lábios.Finjo surpreender-me, dou de ombros ; apenas sou encarado.Resolvo assumir o controle da situação. Indico o centro da sala e sentamo-nos sobre o meu surrado tapete .
Ofereço-lhe o narguilé que pitava,durante sua chegada.Recusa-o.Está a serviço de sua tribo,dos seus irmãos assassinos em guerra santa e feroz contra o imperador abissínio, meu melhor amigo enquanto estou entre os muros do palácio ,.além das montanhas e do calor do deserto.
Tento puxar conversa . A muda solidão de mais de um mês implora falar alguma coisa, antes de vender a mercadoria.Falar apenas para exercitar a boca e a língua em algo que não seja simplesmente comer e beber.
As suas botas,vendidas há três meses , já cambaias e remendadas.Seu olhar e o dedo apontando a grande caixa me fazem retomar o mutismo,o mutismo ágil.Quer ver os rifles.
Levanto, pego dois e entrego para avaliação.Recondicionados em Liége a oito francos , aqui, vendidos a quarenta..Agora ,um sorriso relaxado nos olhos e na boca , alegria infantil de manusear brinquedos caros e desejados .
Sopesa uma arma, aciona o ferrolho,mira um ponto sobre a minha cabeça. Aviso que a arma está carregada. Pergunto se quer testá-la na frente da casa..Ele fala que não, que conhece a arma e confia em mim, comprou-me armas e munição outras vezes e ficou satisfeito.
Pede mais seis rifles.Combinamos um preço Entrego-lhe as outras armas .Ele agradece . Curva -se em lenta e suave reverencia, faz menção de levantar-se e aponta uma fotografia sobre a pequena mesa que faz as vezes de escrivaninha.
Digo-lhe que sou eu, numa época distante, quase outra pessoa e que nem sonhava em vir para cá .Embrulho as armas em dois pacotes , seguros com firmeza e agilidade .
Ele sorri e parece compreender o que me trouxe até aqui.Tenho ímpetos de perguntar-lhe , porque eu mesmo não sei.Lembro apenas do grande desejo de sumir e renascer sem morrer , ressuscitar sem religiões , credos ou algo assim ,.mesmo que na Abissínia , sob o sol ,vendendo armas aos berberes , olhado com desconfiança pelas mulheres (perdi a mais recente esposa no pôquer, para três ingleses, há duas semanas) e pelos homens (o sahib francês que vende armas a qualquer um) .
Pergunta sobre minha ocupação á época do retrato.Digo-lhe que não fazia nada, apenas escrevia alguma poesia vez por outra e que de repente, perdi a vontade de poetar , a poesia perdeu-se de mim e resolvi morrer sem morrer,virar uma espécie de santo na minha própria religião.
Arregalou os olhos , girando um dedo ao redor da cabeça ,chamando - me de louco e rindo baixinho (lembrei-me das hienas cheirando a carne podre) , passou-me o dinheiro que contei e agradeci.
Apertou-me a mão e disse que falaria a todos da sua tribo que o sahib vendedor de armas já fizera poesias , só que escrevera na areia e ninguém conseguiu ler.Sorri amarelo, abri-lhe a porta e ele seguiu o seu rumo,sobraçando os embrulhos com os rifles e amarrando - os nas laterais da sela de um belo e empoeirado cavalo.
Fechei a porta , tomei da vassoura para limpar a terra da sala ,retornando ao devaneio do que faria , caso prisioneiro dos meus clientes ou dos seus inimigos ; tudo a mesma coisa , o mesmo estofo assassino .
Batem á porta..O berbere mensageiro , em retorno apressado.
Tiro o revolver do coldre sob a túnica e o mantenho engatilhado,voltado para quem se tornou apenas um intruso por obra do momento.
Ele percebeu , falou - me para ficar em paz e sem medo.Retornou porque esquecera de perguntar - me sobre o que era mesmo a poesia .Abre um riso desdentado e tímido.
Contemplei-o longamente, escorado no portal de minha casa , com a paisagem do deserto ás suas costas .Alguém cavalgava ao longe, expandindo uma densa nuvem de poeira..
Respondi que a poesia era apenas uma arte de fazer comparações entre as coisas , que fizessem as pessoas ler e dizer ah , que bom ! Ele riu,agradeceu-me em leve reverencia e retomou o seu caminho.Fecho a porta .A surpresa tornou-se há muito, um artigo raro em minha vida .
Um profundo estranhamento liga-me áquele homem.Dele, nada sei ; seus medos , suas alegrias , sua vida sexual ;quantas pessoas matou em sua guerra demente e sanguinária ? Que sabe da vida ? Conheço – o apenas enquanto assassino , talvez a soldo de uma causa ou justificado pela crença em alguma divindade despótica e absoluta .E o sentido se esvai .
Apenas uma incógnita empoeirada comprou – me alguns rifles e colocou – me uma questão profunda e tediosa como a própria vida .Eu , que passo ao largo do tédio e da profundidade , preferindo a adocicada profundidade da lata de biscoitos que tenho sobre a mesa , complemento de meu ópio inútil e sem filosofias.
Volto ao narguilé e á melancolia , consciente dos bolsos mais pesados , tentando concluir uma carta que nunca chegará á minha mãe , sentada a costurar no terraço da sua casa , em concentração serena e meticulosa ; o tecer contemplativo , sua mão , seu braço , a agulha e o tecido, unidade perfeita em tempos tão raros ; minha vida incandescente e fria , Verlaine e a solidão bêbada dos cafés fechando a madrugada , eu docemente enxotado por garçons plenos de absinto e humanidade . Charleville , o ter nascido lá , minha mãe , meu passado : um ponto evanescente na alma e no velho mapa aberto á minha frente. O que hoje sou não mais me assusta , apenas deixou de ter um nome. Assinar Artur Rimbaud no final da carta , é pouco mais que invocar um morto.
andrealbuquerque