NO CALOR DA NOITE
Uma freada brusca . O carro rodopiou, cantando os pneus , mas não impediu o pior .E o pior estava ali , na minha frente , no asfalto . Desci do carro, a tempo de ver a pirralha agonizando entre convulsões e depois , aquietar-se na calma dos mortos .Tudo muito rápido . Olhei ao redor , imaginando de onde viria uma criança sozinha , àquela hora da noite.
Velhas roupas de grife , num corpo mirrado . Minha angústia crescia até á dúvida , se tinha realmente acabado com alguém . Vinha correndo por correr , sem prazer nem ansiedade , numa velocidade afeiçoada a mim ,que virou parte da minha vida .
Inclinei – -me e tomei a garota nos braços . Viva ou morta, hospital. Olhei em torno novamente . Apenas uma praça deserta , árvores grandes e luzes mortiças .
A paulada atingiu – me o ombro direito.A dor me fez largar a menina , o instinto de conservação fez o resto: chutei um rosto magro e encovado ,chutei de novo ,segurei a figura pelos ombros : uma mulher magra e alta , uns olhos vermelhos de raiva e aposto , muita erva . Cuspia no meu rosto e gritava para a noite :
- Miserável ! Me arruinaste , infeliz, assassino !
Uma faca na mão descarnada , um movimento brusco e uma dor surda , de aço, cruzou- -me a barriga . Voltei a chutá-la .Desequilibrou-se , caiu , mas continuei a bater, tomei a faca e encostei –lhe a ponta no pescoço, até a explosão do grito desdentado:
- Desgraçado ! Arruinasse minha vida ,cachorro ! Com essa menina eu ganhava cem real por dia e ainda livrava o aluguel dela pra mãe , infeliz !
Chutei – lhe as costas com toda a minha força , ela urrou de dor e ódio , encolhida junto ao meio - fio , na eloquência do delírio , o desatar – se na loucura , agora o riso químico da permanente bad trip , em que se tornou a vida. Parei . Apenas o cansaço e uma grande amargura . Examinei o ferimento da barriga : feio , mas nada grave .Voltei ao carro e dei partida. Apesar do mormaço, ainda caiam folhas daquelas árvores.
andrealbuquerque