A lembrança veio ao meu encontro, colou- se no cérebro como uma folha solta de papel esbarra e se segura em nós, ao caminharmos contra o vento . Não lembro o que me levou ao cemitério, numa manhã do início dos anos 60 .No interior , a morte era encarada com estoicismo ou desespero rápido , feito chuva de verão .
Então , o garoto de sete anos entrou no cemitério, uma manhã chata,de sol a meio – pau, portão aberto, a risadagem alta e convidativa lá dentro . Na calçada , plano inclinado da porta da pequena capela até a entrada do campo santo , ladeada por sepulturas de tom cinzento e atroz , a molecada chutava um crânio que teimava em não ser bola , de ladeira abaixo .
Junto do muro á direita , o coveiro tirava o cigarro de trás da orelha , reacendia-o e continuava a sua faina de limpar uma cova , para enterrar um novo defunto , parente da cabeça rolante ladeira abaixo. Sua calma não tinha medo ou escrúpulos , apenas fazia o que lhe pagavam para fazer : preparar o buraco para outro . Clavículas e tíbias se harmonizavam , na terra do cemitério que dava sentido àquela anatomia reversa e singular , onde uma canela parecia buscar a coxa irmã , entre uma pá de terra e outra.
Não lembro quanto tempo contemplei aquele espetáculo , que de alguma forma moldou meu sentido de morte, de transitoriedade , de puro e simples encerramento de alguém e do trabalho da terra , desbastando aquele que segundo me contaram , fora o velho Abdias, enterrado já há dez anos . Figura apagada ,sensaborão pelas esquinas da vida, virou cabeça disputada a chutes e pontapés ,numa pelada digamos fúnebre , no velho cemitério do interior .
Achei graça, ri um bocado , depois , sem medo nem asco, virei as costas e segui meu caminho . Tinha um longo trecho a percorrer do Alto do Cemitério até a minha casa .Ao sair, em frente ao portão ,num jipe azul estacionado , o rádio tocava Waldick Soriano , enquanto o motorista urinava junto á vizinha cerca de papoulas , num aliviado olhar sobre a cidade.
andrealbuquerque