Contos : 

Cada dia é um abismo atômico

 
O homem arrastou sua angústia no caminhar mudo que principiava no trajeto da cama até o banheiro. Depositou no vaso uma rajada comprida de urina sem olhar o pênis, tentando se reconhecer no espelho grande lateral. Pela porta aberta do banheiro observou sua mulher sentada na cama. Seu cabelo era amarelo, a pele também, das longas horas na câmara de bronzeamento artificial. Ela era feita de uma camada fina de qualquer coisa quase transparente e por mais que a olhasse via apenas a superfície que não lhe dizia nada. Não podia pensar que ela lhe pesava. Não pesava. Era leve como um fardo que se esvaía em um saco furado, deixando migalhas atrás de si. Sua mulher era como um poente que beira timidamente a borda da noite, ansioso por sumir no escuro. Algumas manhãs ele pensava a palavra que a definia e com a voz rouca e grave, dizia baixinho no banheiro. Opalina. O som gutural tornava a imagem mais estranha. Irritou-se com o espelho que o mostrou inteiro. Olhou seu perfil curvado e assustou-se com a imagem. Ainda estava naquele estágio de alheamento que o acordar recente provoca, fazendo-o errar a boca do sanitário. Não sou eu, esse rosto de quem deve o dízimo a igrejinha do bairro. Como vai amigo? Deixou cair o desenho que estava debaixo do braço, sujando com sua urina. Limpou o vaso contrariado. Passou o papel seco. Depois outro molhado, esfregando a borda do vaso e o chão. Fechou a tampa. Escovou os dentes. Não tomou banho.
As crianças eram contentes. É. Acho que são. Sua mulher colocava os pães sobre a mesa. Cada movimento dela fazia estalar sua espinha, um incômodo que subia pela garganta e o fazia engasgar com o café. Mexia a bunda na cadeira, tirava os cotovelos da mesa, parava de ler o jornal, como se isso melhorasse seu enfado. O mesmo café quente embasava os óculos deixando tudo à sua volta opaco, leitoso. Há muito que não havia olhares íntimos, apenas contatos ínfimos. Toques bordejados, diagonais. Nunca a frontalidade. Faziam sexo de ladinho. Ela de costas.
Olhou o relógio e saiu apressado empurrando os passos para fora de casa e caminhou sobre linhas intermináveis. Desejava um dia se perder. Iniciar o caminho com uma única linha sinuosa. Fugir de seu abismo atômico. No trabalho, outra xícara de café quente sacudiu seus pensamentos.
- Bom dia.
- Trouxe o desenho?
- Não.
- Não?
- Não. Mas já está pronto é só imprimir.
- Vê lá! Te falei que a pele de vidro é opalina?
Voltou para casa ao final do dia. O tempo todo erguendo os óculos, seus olhos congestionados trotando pelas calçadas enraizadas. Foda-se o caminhante. Por trás de tudo tem uma forma recheada de algo grosseiro, algo fino, oca.


o mais importante não se conta, se constrói com o não dito, com o subentendido, a alusão”. (Piglia)[/color][/color]

 
Autor
Maria Verde
 
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Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 18/04/2013 03:14  Atualizado: 18/04/2013 03:14
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Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 18598
 Re: Cada dia é um abismo atômico
procura na fotografia os olhos gstos e dentes
mais afiados que dos ratos... é tudo que atormenta.
um conto horizontal, com palavras na vertical. e gostei,
como gostei... bjs