eu vi a loucura do mundo
no mundo
que me coube observar
como se a loucura fosse um copo de vinho
sobre o balcão
à espera das minhas mãos
da minha sede
da minha boca
como se o vinho fosse a esponja
que apaga o giz
na ardósia da minha memória
eu vi a fogueira reacesa da inquisição
erguer labaredas
apaixonadas
pelo corpo dos homens
das mulheres
que aguardam a vez na fila do desemprego
com seus olhos resignados
esperançados
enquanto a língua de fogo
como que os beija
enquanto gritam em silêncio
eu vi as bruxas em redor
surpresas com os homens
as mulheres
sem nome
com um talão na mão
exibindo o número que tarda
no painel electrónico
as bruxas
a quem só resta a loucura
que reclamam as chamas só para si
mordendo a madeira
por morder
com feitiços de água pura de inveja
eu vi uns miúdos esfolarem o tempo
procurando a solução do tempo
o fim do tempo
somando os número da roleta
de um a trinta e seis
como se na soma se consumasse
a aposta
a matança do tempo
eu vi uns indivíduos sonhando a gravata
distante da fogueira
longe de qualquer chão
longe de qualquer ramo
confiando o seu caminho
no fundo de uma garrafa qualquer
sonhando a gravata
apostando na madeira a arder
eu vi o crepúsculo nas mãos dos homens
das mulheres
dos velhos
das crianças
o crepúsculo nos gestos que não nascem
e foram os gestos presentes
nos dias do pão
eu vi o charuto
o uísque
o champanhe
o caviar
nas janelas dos escritórios
sem rosto ou nome
o riso do dinheiro
a gargalhada da fábrica
que fecha
e arregaça as saias para atravessar
os continentes
os oceanos
em busca de uma foda mais barata
que foda
com prazer
as cotações
eu vi as salas de chuto repletas
mapas espalhados
espelhados
em cada olhar
desbravando caminhos para o paraíso
longe de tudo o que é mundano
de tudo o que é humano
e vi-os a caminhar
sentados
deitados
encostados
à parede ocasional
e vi-os com o terror consumindo-lhes a queda
para um purgatório sem fim
eu vi a loucura do mundo
no mundo
que me coube observar
e afogo a minha própria loucura
num copo
como se buscasse ao lábios da cicuta
os braços da cicuta
o regaço da cicuta
como quem descobre a última
a derradeira
verdade
e com ela
e por ela
se entrega à morte
eu vi o céu em chamas sem futuro
seco
estéril
como os campos do meu país
alfaias
artefactos
artes
em letargia
como histórias de antanho
à espera de um príncipe qualquer
montado num cavalo branco qualquer
que os beije
e redivive
eu vi a morte
olhos nos olhos
e a morte tocou-me na fronte
como se o meu destino fosse ver a morte
na rotação da terra
sob o eixo da estupidez
a morte rindo
e rindo-se para mim
mostrando os corpos queimados
derramados
espalhados
mutilados
pela arte suprema da guerra
inventada para o supremo gozo de alguns
eu vi mais do que o que havia para ver
e mato-me
lentamente
diariamente
com a esperança dentro dos bolsos
para amanhã não acordar
não ver as notícias
que nos impingem
e que mesmo sem as requerer
recebemos
eu vi o carro fúnebre passar
engalanado
frente ao monumento
de todos os prazeres
e comprar as flores
como quem compra um corpo para consumir
em uma hora
numa das mais banais pensões
que couber na imaginação
eu vi allen ginsberg imolar-se dentro do poema
como se o poema fosse o corpo de fénix
renascendo das cinzas
fundando-se nas cinzas
como um sísifo que sonha o topo do monte
para ver a pedra perder-se pelas sombras
monte
abaixo
vi-o uivar
não pela sua geração
mas por esta
que como mosca
sai do meu país
não por falta de merda
mas por excesso da mesma
eu vi camões vieira bandarra pessoa pascoaes duarte
tantos outros
eu vi-me
alinhados
como em fuzilamento contra uma parede
uma vala comum por perto
e o zeca a cantar os vampiros
ele também alinhado contra a parede
uma vala comum por perto
e tiro algum nos atira contra a parede
uma vala comum por perto
que tiro algum nos apaga a voz
eu vi que quando nos dizem que o futuro é
devemos dizer
que o futuro é
o que nós queremos