li pela manhã
à hora do café
que o poeta morreu
mas de morte natural
nada a assinalar
nesse domínio
morreu
acabou-se
bateu as botas
enfim
foi-se
foice de uma ceifeira
outra
não a que ceifa
nas planícies
do alentejo de outrora
que não essa
lhe limpou o sebo
há quem diga que o poeta
era pior do que as moscas
em redor das palavras
queria todas
sem excepção
no entanto repete-se
morreu
de morte natural
nada de indigestão
por ingestão
em demasia de palavras
morreu
e caso encerrado
cerrado
ficaria o baú
se baú tivesse
o poeta da notícia
mas não
não tinha baú
para ficar cerrado
sequer gaveta
agora
ele era todo computador
assim
cerrado
ficaria o disco duro
se não fossem os que logo
pela manhã
entraram casa adentro do poeta
não com condolências
mas com projectos
cerrado
ficaria o poeta
bem aconchegado
no regaço da morte
se não fossem
os estudiosos
não da morte
mas do poema após a morte
do poeta
porque em vida o que vale o poema
nada
só os holofotes
da morte
conferem estatuto
ao poeta
e como tal
ao poema
que o poeta
um dia escreveu
diz-se
que o poeta trazia uma canção
no bolso
para fumar mais tarde
porque as canções também se esfumam
e pela boca
após travar bem dentro dos pulmões
trazia
dizia
porque se diz
uma canção
para fumar mais tarde
tardou o dia
e turvo ficou o sonho
não do poeta para a fumar
mas da própria canção
que assim ficou no bolso
esquecida
sem ser fumo
e uma canção no bolso
é como quem diz
um rebuçado
uma pastilha elástica
mas o poeta em questão
o tal que morreu
de morte natural
era mais de cigarro
cigarrilha
charuto
cachimbo
era mais de fumar
do que mastigar
cacimba cai
cai a cinza no bolso
onde o poeta tinha uma canção
que aguardava
ser consumida
e a cacimba que cai
sob a forma de cinza
cinge
a canção como lágrima
o poeta era um louco
que trazia sempre música
como suspensórios
a suspender
as calças da criação
ele ainda julgava que criava
queria criar
mas só imitava o mundo
dava-lhe uma outra matéria
na transfusão
que não era sangue
sequer tinta de pintor
ou pó de escultor
mas palavra
lavra o lavrador a terra
para isto
para escutar
que o que morreu de morte natural
imitava o mundo
através da palavra
e o poeta errava
por entre palavras
conspirando contra o mundo
o poeta era
sem dúvida
um louco
como aquele que trazia
a aparelhagem às costas
para dar música aos outros
os que queriam
e os que não queriam
palavra de poeta é
pois
treta
os outros
os que não dizem ser poetas
também a usam
e de que lhes vale isso
não são poetas
pelo menos de título
mas sempre se salvam
da triste figura
essa de mãos nos bolsos
acariciando
a canção que se traz
no bolso ocasional
uma canção
recorda-se
para fumar mais tarde
que ainda não havia
palavras
para ligar o som
mas como o poeta morreu
finou-se
também a canção
e só de pensar
que o desejo derradeiro
do poeta
o tal que morreu
de morte natural
seria nos seus últimos instantes
coisa que não viveu
somente furtar
descaradamente
uns versos
do lois pereiro
e chamá-los de seus
cuspídeme enriba cando pasedes
por diante do lugar no que eu repouse
enviándome unha húmida mensaxe
de vida e furia necesaria
não houve tempo
morreu
Xavier Zarco