Preparem-se!
Hoje vou penetrar-vos o âmago dos sentidos,
Vou arrancar-vos os sangues dos gemidos,
Os últimos cantos em dores finas,
Percorrer todas as fibrilas clandestinas
Dos vossos óbvios e incautos corações!
Não tenham medo, calem as orações,
Repousem só os credos que aprenderam
E leiam-me, como nunca antes me leram!
Entreguem-se!
Regridam até ao útero de todos os inícios
Dissequem todos os mínimos indícios
Regressem à certeza do pecado original
De não nascerem livres de ónus e de aval!
Respirem agora as dores aprofundadas
Na prematura idade das coisas não faladas,
As anestesias das carícias, o colo de vossa mãe,
O murro no nariz, e o sangue que essa dor tem!
Recordem-se!
Não foi por aí a primeira desilusão?
Não foi por aí que alguém vos deu a mão?...
“-Vai por aí, por aqui há coisas que não precisas,
Vai por aí, lê assim, senta direito, respeita as divisas...”.
Foi por aí também... a primeira traição, amargando fundo,
O primeiro amor, engrandecendo o mundo,
O adeus imprevidente, rasgando horizontes,
O último beijo, secando para sempre as fontes...
Revejam-se!
Na árvore jovem com sede de céu e inferno!
Na terra pejada de flores que morrem no inverno!
Na ilusão breve de ter o mundo na mão,
A certeza toda, a eternidade dos amores de verão...
Depois, recaiam na ansiedade de ser,
Na dor de um amor, lentamente, a morrer,
Na erro fatídico de fazer por fazer e usar por hábito
Os mesmo papéis, os mesmos anéis, os mesmo êxitos...
Repesem-se!
Que valor dar ao grito que não nasceu?
Que dor chamar ao filho que nos morreu?
Que cor inventar para o dia que nos sorriu?
Que sabor escolher para o fruto que não surtiu?
Que importância dar à palavra que nos magoou?
E a primeira bofetada, que dano irreversível nos causou?
E o primeiro passo, em que número milenar coube?
E as marcas por sarar, os dias por contar, alguém os soube...?
Lede:
Por vós,
Por mim,
Vingai todos os poemas já escritos
Sangrai todos os ecos não proscritos!
Vede:
Por mim,
Por vós,
Escrevo este poema de vida inteira...
P'la metade, ninguém o creia, ninguém o queira!
*Escrevi este poema para o IV Evento Luso-Poemas, mas, achando-o longo e pesado demais para ser lido entre tantos, "cortei-o" pela metade, para a versão participante. Poesia também é isto, depuração (ou castração...?).