Jamais a alma sente
O que o corpo desmente
Enquanto pedinte na sua incursão
Pelas avenidas novas
Jamais os rios sussurram
Enquanto as correntes estagnadas
Aguardam pela ressurreição das águas
Serão elas a única esperança
Para quem vive, e só
Para desenhar com palavras
As sombras que escondem um rosto
Ainda inocente
Para crescer basta ousar Ser
Mas para Ser é preciso ousar saber
Que o mundo é mundo
Só porque existe o céu
E ali, nascem e morrem as estrelas
Só porque o sol é o astro rei
E ali, escondem-se todas as pedras preciosas
Só porque existe a vida
E com ela a verdade nua e crua
De quem vive, cresce e morre até ao juízo final
Mas à noite acontece a lua
Para encomendar os sonhos nefastos
Daqueles que andam nus
A reescrever versos
Como pano de fundo
Da noite dos poetas vivos
E também dos poetas mortos
Mas de dia acontecem as primaveras
Para remendar os pesadelos
De quem ainda não vive no presente
Traçando em versos do passado
O berço da sua realidade
(Aguarda ainda para crescer na vontade
De querer ousar Ser de verdade?)
Que futuro incerto brilha agora
Nos seus olhos!
Sim, incerto por ser a sua verdade
Esmagada contra a corrente
Que os prende ao passado
E não os deixa viver o presente
Jamais as palavras serão correntes
Enquanto nos rios morrerem poemas
Criados com cruzes ao peito
E sinais da cruz tortos
Arrematados da direita para a esquerda
Testa com testa
Boca com boca
Ombro com ombro
Salpicados com água benta
Já estagnada nas pias batismais
Jamais será a poesia
A fonte de água cristalina
Enquanto nos banquetes
Se saciam os poetas
De fel, como se fosse o mel
Sabe-se que o mel adoça a boca
E escorre por todas as entranhas
Onde a voz se amacia
Tal como os seixos dos rios
Sabe-se que a órbita de um corpo celeste
Entra em ação quando
No seu corpo palpita o coração
Pobre coração que sente
E não se desmente
Pobre alma que escurece
E não se abastece da maior noite estrelar
Pobre poeta que escreve
E não se subscreve em sentimento
Aquele que se juntou às mais altas esferas
É passado, presente, e futuro
Lá, sim onde se dá o renascimento da poesia
- Será que a poesia tem alma?
Pergunta-me o poema
Jamais será o poeta, o astro rei da poesia
Enquanto não ressuscitar dos mortos
E sair dos escombros onde amontoou
Palavras, e mais palavras
Despidas de sentimento
- Jamais, jamais, jamais…a rima perfeita
Para início de um poema sem rimas
Mas ritmado no centro
Onde nasce o sentimento
Bate agora com a mão no peito
- Amem, amém, amém,
E no centro do seu corpo ouvem-se rumores
Versos que gemem por mais água benta
Gemem, gemem, gemem
Querem sair e rodopiar
Mas o corpo saiu de órbita
E nada o fará voltar
A ser céu
E lua
E estrelas
E até fonte de água cristalina
A correr montanhas
E a saciar os rios de novas correntes
E diz ele que é poesia
E diz ele que é poeta
E diz ele que fala
Quando o que sente o cala
E o leva a sonhar
Com as sombras ainda caladas
E sufocadas no seu olhar
Enquanto crescem as flores
Ele abandona os andores
Enquanto cantam os pássaros
Ele abdica de voar no céu
Enquanto crescem as árvores
Ele despe-se nas margens do rio
Enquanto jorram as fontes
Ele bebe do que julga ser o supremo
Esse incitador que lhe diz
Que é o eleito
Pela seleção da ordem natural
Escolhido para correr mundo
Mas e a poesia? Essa fica enjeitada
Ou mesmo calibrada nuns quantos punhados
De pepitas de ouro
Quando cantada, ou simplesmente
Arreada no solo fértil
Onde o poeta semeou a sua vontade
Jamais será o verso
Estrela cadente no seu cio
Por ser fêmea adultera
E poeta inculta
Nas avenidas novas
E até nas velhas
Onde estancou agora os seus passos
Para ver só, até onde irá
Quando já nada tiver para sossegar
O corpo e elevar a alma
(Dolores Marques – Ônix; Eventos 2013)