Poemas : 

acordei

 
acordei
e foi há menos de cinquenta anos
meio século

mas tomei consciência

da minha condição
de acordado
há menos tempo

talvez uns trinta e poucos anos
não mais do que isso

mas o ter consciência
e o ter a veleidade
de pensar
que posso pensar
e o ter a ousadia
de escrever
por julgar que há algo a dizer ao outro
que tenho algo a dizer ao outro

isso
bom
isso é mui sério
isso é quase convocar o ginsberg
e gritar-lhe o seu uivo
ou chamar o gullar
e dizer-lhe que
afinal
há um poema
que
pelo menos
se diz poema

o diz o poeta

mais sujo
que o poema sujo que o gullar deixou no papel

este

volto a frisar

diz o poeta

não é sujo
mas imundo
mais do que imundo
sórdido
perdidamente sórdido

nasceu num bordel

na subcave
que há na subcave
de um qualquer bordel

do ventre da meretriz
que sequer cobra o aluguer do corpo

fica por conta da conta da madame
que lhe faz o favor
o grande e enorme favor
de lhe ofertar a cama
e lhe levar os caralhos
como canjinha de galinha
que a invadem

quer queira
quer não queira

os passos pelas escadas dizem
que a puta

a mãe do poema

sequer vê

mas ver para quê
de que vale ver
com os tais olhos que a terra há muito já comeu

para morrer
já o outro dizia
basta estar vivo

e esta mãe

como tantas outras mães
morreu com o próprio coração a bater
com a respiração a desenhar o fole

acordei
puta que pariu quem inventou a puta dos horários
afixados
em postes
elevados à condição de coisa essencial à vida
presos ao pulso
reféns das máquinas que
assim nos fazem crer
repousam
como bibelots
nas mesinhas de cabeceira

mesinha
que termo tão terno
cabeceira
que coisa mais bonita

em frente a cómoda
sobre esta a maquilhagem da morte
emoldurada

mas que
como os galos
que degolámos para deleite do estômago
e dos ouvidos

confesse-se

nos gritam pela manhã os tais
os tais
os tais filhos da puta

tal como o poema
dos horários
coisa
que nem o mais fino dos papéis higiénicos
é capaz de limpar os vestígios

acordei
e fui para o duche
mas o duche não conduz para o ralo
o horário
antes me diz
em seu cantar
enquanto me massaja o lombo
que há que ter calma
que tudo retoma o seu ritmo normal
natural

a seu tempo

mas o horário
esse ri-se a bom rir
que bem sabe
que do poste
que do pulso
que da mesinha
que da mente
não se descola

acordei
e já me barbeei
que um homem
nos tempos modernos
tem que preservar a imagem
tudo
tudo
tudo
tudo
tudo

e não esquecer

tudo
tudo

e os sapatos
que devem apresentar-se imaculados

como virgem em noite de núpcias
não o noivo
esse
por conveniência de serviço
deve ter rodagem suficiente
tipo carro que provou
do seu próprio motor

acordei
mas será que acordei
que não me ficou um resquício de sono
de sonho
de pesadelo
de qualquer merda
que me diga
afinal
alguma coisa
para além dessas coisas
que perduram nos postes
nos pulsos
mesas

digam
há qualquer coisa por aí?






Xavier Zarco

 
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Xavier_Zarco
 
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Enviado por Tópico
Caio
Publicado: 02/04/2013 23:46  Atualizado: 02/04/2013 23:46
Membro de honra
Usuário desde: 28/09/2011
Localidade: Olinda, Pernambuco
Mensagens: 898
 Re: acordei
pra mim, o zarco em seu melhor. grande poema, zarco.

abraço

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 03/04/2013 00:03  Atualizado: 03/04/2013 00:03
 Re: acordei
há de tudo no poema nos faz acordar para a realidade, e ainda há, "que um homem nos tempos modernos tem que preservar a imagem"... e seguir no seu cotidiano.
meu abraço caRIOca.

Enviado por Tópico
Clarisse
Publicado: 03/04/2013 15:43  Atualizado: 03/04/2013 15:43
Da casa!
Usuário desde: 24/09/2009
Localidade: aqui
Mensagens: 392
 Re: acordei
Olá Xavier_Zarco,

Fantástico!

Um poema inundado de poesia, que extasia, nas águas da realidade não fosse ela verdade.

Há sim, poesia em cada coisa a mais trivial.

Saudações poéticas.
Clarisse Silva