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Poema da vida inteira

 
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Outrora, qual a Aquiles,
Quase me devoraste,
Escamandro furioso,
Procela borrascosa – desmesura.
Espremeste-me contra paredes,
Pegaste-me pelos gorgomilos,
Exigindo-me tudo o que não tinha,
Tudo o que perdi ou vendi,
Tudo o que sempre exigiste de todos:
Venalidade!
Enquanto três bocas
Choravam ruidosamente.
Nestas horas, roubaste-me
Até meu corcel negro,
E quando pedi ajuda, decretaste:
“ – Não sei se é verdade... te vira, rapaz!”
Grande artista da esquiva e da omissão,
Quase me arrancaste todas as lágrimas,
Fazendo-me sinistros convites ao mar.
Terrível alquimista,
Transformaste todo meu mar e sal
Em pedra, todo meu céu e lume em lodo.
Entretanto, estou aqui:
Mil vezes amado, desprezado,
Mil vezes perdido e sem caminho,
Mil vezes sem profecia ou futuro
A te encarar nos olhos... vivo!
Com os ombros curvos
De quem muitas vezes baixou a cabeça,
Em cadeira, de quem quebrou
Orgulhosa cerviz.
Hoje, estou aqui te encarando,
A esboçar um sorriso,
Sem perigo de virar pedra.
Outros choram, lamentam-se,
Preferem puxar o gatilho da melancolia,
Embriagar-se da memória dos que partiram.
Comigo não é assim:
Já não sinto sede ou fome
Na língua seca, no estômago enjoado.
O esquecimento é o bálsamo
Que ofereces a esta esponja ressequida.
Hoje, vozes compungidas
Calaram-se em meu peito,
Aguilhões a me ferirem
Já não fazem mal
À carne afeita à dor.
Agora, admiro tardes iluminadas e frescas
Que tanta luta ensombrou, esfriou,
Que tanto arrependimento transformou
Em noite e tempestade...
Sinto-me faltoso, por isso humano, completo.
O futuro não mais me inquieta: vivido está!
Perdido está!
O passado dia-a-dia julga-me,
Mas vou sempre sorvendo as velhas mentiras
Que imobilizam toda a culpa
E as revoluções deixadas por fazer...
O presente reduziu-se a um zéfiro suave,
À profunda aceitação.
Este momento sem perspectivas, metas,
Ou pegadas encapsula-me.
Sou duro, carne de pescoço.
E agora?
Pergunta que já não cabe mais:
Agora estou completo, perdido,
Perdido...

 
Autor
Felipe Mendonça
 
Texto
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Esta obra está protegida pela licença Creative Commons
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Enviado por Tópico
Felipe Mendonça
Publicado: 23/03/2013 22:11  Atualizado: 23/03/2013 22:11
Usuário desde: 01/12/2011
Localidade: Rio de Janeiro
Mensagens: 541
 Re: Poema da vida inteira
Este poema, de minha autoria, foi agraciado com o terceiro lugar no IV Evento Luso-Poemas. Muito me envaidece ter alcançado tal posição dentre poemas tão bons. Agradeço a todos que nele votaram e o apreciaram. Obrigado e grande a abraço a todos.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/03/2013 22:56  Atualizado: 23/03/2013 22:56
 Re: Poema da vida inteira
é um belo poema, Felipe. parabéns pela honra recebida.


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/03/2013 03:48  Atualizado: 24/03/2013 03:48
 Re: Poema da vida inteira
Belíssima composição...um crescente que finda brutalmente simples...verdadeiro e intransferível! Merecida premiação!
(Abraços)
Lápis

Enviado por Tópico
Eventos Luso-Poemas
Publicado: 24/03/2013 14:10  Atualizado: 24/03/2013 14:16
Eventos
Usuário desde: 20/04/2012
Localidade:
Mensagens: 486
 Re: Poema da vida inteira
Um poema que nos arrasta, roubando, aqui e ali, pedaços da nossa carne. Muito bom, parabéns pelo destaque merecido.

Abraço.


E L-P

Por favor, atente no comentário 28, deste tópico:

http://www.luso-poemas.net/modules/ne ... t_id=28115#forumpost28115

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/03/2013 21:27  Atualizado: 24/03/2013 21:27
 Re: Poema da vida inteira
daqueles poemas que nos arrebatam...abre-nos a porta e sem dar-mos por isso, já estamos completamente absorvidos pela envolvência do ambiente criado, refastelados no sofá em animada cavaqueira com o poema...e quando acaba não queremos ir embora, não queremos sair e fechar a porta...abraços

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 24/03/2013 21:53  Atualizado: 24/03/2013 21:53
 Re: Poema da vida inteira
Parabéns, Felipe. Poema de nota máxima.

Saudações

maria

Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 24/03/2013 22:28  Atualizado: 24/03/2013 22:28
Membro de honra
Usuário desde: 25/01/2009
Localidade: Pouso Alegre - MG
Mensagens: 18598
 Re: Poema da vida inteira
parabéns Felipe, por esse poemão! bjs

Enviado por Tópico
Felipe Mendonça
Publicado: 24/03/2013 23:51  Atualizado: 24/03/2013 23:51
Usuário desde: 01/12/2011
Localidade: Rio de Janeiro
Mensagens: 541
 Re: Poema da vida inteira
Lápis, organizadores do evento, Nuno, Maria e Vaninha, obrigado por vossos comentários; eles me deixaram muito feliz. Obrigado mesmo. Grande abraço a todos.

Enviado por Tópico
JPAnunciação
Publicado: 25/03/2013 15:44  Atualizado: 25/03/2013 15:44
Usuário desde: 18/06/2008
Localidade: Évora / Lisboa
Mensagens: 250
 Re: Poema da vida inteira
Caro Filipe,
Destacaria deste poema tantos versos, tantas frases que são autênticos pensamentos.
Um poema que flui dentro de si, como um cântico que se estende por entre claustros silenciosos.

Eis um momento ímpar na Poesia:
"Outros choram, lamentam-se,
Preferem puxar o gatilho da melancolia,
Embriagar-se da memória dos que partiram."

Muitos Parabéns!!!

Um abraço,
João Paulo


Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 31/03/2013 16:46  Atualizado: 31/03/2013 16:46
 Re: Poema da vida inteira
Felipe, após sua recepção calorosa, resolvi retribuir-lhe visitando seu perfil, e segui o link do seu blog por curiosidade, e tive lá o impacto de encontrar exatamente este poema logo no início. Não apenas por este, mas por todos os outros textos que vieram depois, entendi a dimensão que a poesia tem dentro de você. Fica com o meu respeito, grande Poeta (assim mesmo, com letra maiúscula).