O Jorge era um rapaz dos seus vinte e tal anos que de vez em quando aparecia sem ser esperado. O que até certo ponto se compreendia, pois tinha sido por ali criado num casebre ao cabo do oiteiro, paredes meias com a casa dos tios, agora vazia em virtude de terem abalado todos para Coimbra e por lá terem ficado agarrados a uma banca de lavores e quinquilharias, numa praceta onde desaguava a Rua Direita, talvez a mais famosa da cidade...
Era num prédio desta mesma rua, num quarto andar a cair de podre, que também moravam. Era tão minúsculo mas o mais acolhedor que se possa imaginar visto que nunca deixaram ninguém da terra na rua, quando ali apareciam ao escurecer, a maior parte das vezes por causa de uma consulta no Hospital da Universidade, a um especialista de qualquer coisa que o médico da Casa do Povo lhes tinha passado na credencial. É que às vezes as consultas eram cedo e nem sempre se ajustavam com os horários da camioneta da carreira. Chegámos a ficar lá algumas vezes, eu e o meu pai, aquando das consultas de oftalmologia que só haviam em Celas.
Montava-se um divã junto à janela, abria-se o sofá, ou, se fosse muito preciso, dividia-se a cama da filha mais velha que ficava logo atrás da cortina que separava em dois o único quarto que havia. Em três tempos arranjavam-se ali quantas dormidas fossem precisas e sempre de boa vontade, coisa que aliás, nunca faltava! Que o digam os que lá foram bater à porta, enrascados, por mais de uma vez.
Voltando ao Jorge, sempre que lhe dava na gana, lá vinha ele rua acima - como um íman, havia qualquer coisa que o chamava ao lugar onde crescera e como não costumava dar contas a ninguém, nem ao lar onde o pai o tinha internado lá para os lados da Marinha Grande, por via dos ataques de fúria que lhe costumavam atazanar o corpo a pontos de até espumar pela boca. De modo que, aparecia por ali, por vezes já noite cerrada a bater-nos à porta. A minha mãe, como boa alma que sempre foi e ainda para mais, por se tratar do filho de um primo direito do meu pai, não o ía deixar na rua. De modo que, tratava logo de lhe fazer umas batatas fritas com qualquer coisa mais que ía buscar à panela das aflições(*) e de lhe arranjar uma cama improvisada num divã que armava no corredor. E o Jorge por ali ficava, dois ou três dias até se fartar, a matar as saudades das pessoas e da terra que também era a sua. Depois abalava, tal como chegara, mas deixando no ar a certeza de que voltaria, numa outra ocasião qualquer.
(*) - termo usado para designar um pote de barro onde geralmente se conservavam as carnes e os enchidos, mergulhados em azeite.