A MORTE NÃO EXISTE
Isabel chegou e pousou as suas mãos nas costas da minha cadeira. Balancei ligeiramente a cabeça e notei que os seus olhos reflectiam um certo mal estar.
Aquele verde penetrante, estava imerso num caudal de lágrimas, pronto a soltar-se.
- Que tens Isabel? – perguntei.
- Sabes que há uns tempos que me ando a sentir mal. Um cansaço constante e umas dores de cabeça infernais.
Certamente que Isabel estava a precisar de umas boas férias. Trabalhava muito e eu sabia bem o quanto isso a tinha desgastado nos últimos tempos. A empresa expandiu-se e todos nós tivemos que suar abruptamente.
Reparei então que as suas mãos tremiam, encostadas à minha face. Estavam frias e húmidas.
- Estás a deixar-me preocupado Isabel.
O meu rosto estava agora estranhamente padecente.
- Fiz o teste de despistagem ao VIH. Sou seropositiva.
Aquelas palavras soaram-me a sentença de morte. Não conseguia imaginar uma amiga, jovem e bonita, morrer de uma doença pérfida e humanamente incompreensível.
- Como foi isso acontecer? – estava perplexo.
- Francisco, simplesmente aconteceu. Não perguntes como. Diz-me apenas como posso ainda ser feliz.
Não respondi… esfreguei as mãos no meu cabelo, hábito que adoptei quando surge algum problema e, deixei-me levar pelos pensamentos que afloravam na minha consciência.
- Para começar, vais fazer as malas. Hoje é Sexta Feira, a meteorologia anuncia calor para o fim de semana e o mar aguarda-nos.
Isabel sorriu… naquele esgar de rosto, reparei que as almas perpetuam-se em corpos frágeis… a morte não existe!
Viajámos entre lágrimas e risos… segredámos confidências sinceras.
Chegados ao destino, avistámos as ondas, que espumavam caudais brancos sobre as rochas negras. Em silêncio, contemplávamos a voz irada do oceano.
- Tudo é tão perfeito, Francisco. Passamos pela vida e ignoramos o que se estende para além do horizonte. Esfumamos o belo, como se ele nunca existisse.
Isabel estava agora comovida. Pensei se quando somos sentenciados de morte, aprendemos que a vida tem muito mais que o banal do quotidiano.
- Isabel, vamos caminhar. Arregaça as calças.. descalça-te e deixa que os pés toquem o infinito entre mar e terra. Perpetuemos a nossa amizade, ao som das trombetas de Neptuno e do canto ameno das Sereias.
- Sempre tão poético, meu querido amigo.
Fiz uma expressão de desconfiança, que logo se desfez em mais uma gargalhada.
Era já noite, quando abandonámos a praia. Uma leve brisa fresca tocava os nossos corpos cansados. As pernas reclamavam descanso. A caminhada tinha sido longa… as brincadeiras, mais que muitas.
Deitámo-nos nas areias inertes e a lua brilhou para nós.
- Acreditas que existe vida para além da morte? – perguntou-me Isabel.
- Sim… acredito mesmo! Nada faria sentido, se assim não fosse. Mas a tua viagem ainda vai demorar. A ciência evolui a cada dia. As esperanças renascem sempre…
- Hummm – murmurou com tom de incredulidade.
Adormecemos. Quando a manhã surgiu, reparámos que os nossos corpos estavam cobertos por uma areia fina… de um perfume suave…
- Francisco, acreditas que as amizades salvam?
- Se os sentimentos que constroem as amizades são verdadeiros, então a eternidade pertence-nos.
- Tal como as estrelas pertencem ao céu…
- Isabel… tal como as nossas almas, pertencem ao infinito.
Os dias passaram… a rotina voltou! Isabel iniciou os tratamentos. Falávamos quase diariamente. Teve uma paixoneta pelo Diogo, médico auxiliar no Instituto de Doenças Infecto-contagiosas.
Eu fui destacado para a Suécia. Uma filial da empresa… um óptimo ordenado. Condições de vida excelentes.
Constantemente enviava e-mails à Isabel. Sempre preocupado com o seu estado de saúde… sempre em busca de resultados positivos.
Passaram dois anos e Isabel encontrava-se melhor. O Diogo tinha sido um companheiro extremoso. Era uma presença importante no caminho de Isabel. Um trilho cujo fim, era sempre uma incógnita.
Num dia frio de Inverno, cheguei a Portugal para uma formação. Visitei a família e calcorreei lugares preenchidos pela saudade.
Decidi então ligar à Isabel. Queria vê-la… estava ansioso por esse momento. Fazia no dia seguinte um mês, desde o nosso último e-mail.
Estranhei quando após larga insistência, ela não atendeu o telefone. Liguei para o hospital.
- Quero falar com o Dr. Diogo Silva, por favor.
- Um momento. Vamos transferir a sua chamada.
O meu coração acelerou. A música da chamada em espera irritava-me profundamente. Sempre fui impaciente…
- Estou??
- Diogo, é o Francisco. Tudo bem?
A respiração do outro lado da linha tornou-se ofegante. A voz emudeceu. Percebi de imediato. Algo de muito grave tinha acontecido.
- Diz-me que está tudo bem, Diogo.
- Francisco, a Isabel morreu!
Não consenti no meu pensamento aquela palavra! Não e não… a morte não existe!
- Conta-me o que se passou. Quero entender… preciso de saber… - a minha insistência era agora doentia.
Após silêncios humedecidos por choros inconsoláveis, Diogo contou-me o sucedido. Uma pneumonia a que Isabel não resistiu. Estava muito fraca devido aos tratamentos. Foi fatal!
Prometi encontrar-me com o Diogo no dia seguinte. Naquele dia não era capaz de o fazer. A notícia da morte da minha amiga endurecia o meu coração… gritei, injuriei tudo e todos!
Havia uma coisa a fazer. Entrei dentro do meu carro e dirigi-me para a praia… só aquele cenário que tinha sido testemunha de uma das amizades mais belas e duradouras, podia amenizar a minha dor.
Caminhei ao por do sol… pisei areias infinitas e mergulhei nas águas gélidas do abismo marinho.
Encostei-me a um rochedo, imergente da espuma feita de fúria e desespero. Ao longe, soou uma melodia cálida. Serenei o espírito e busquei a voz.
Ali… no crepuscular luar, encontrei a Deusa perdida da noite. Mareada por luzes soltas, olhou-me. Reconheci o rosto de Isabel… e com um sorriso, desbravou-me ímpetos de amor e de amizades felizes!
A MORTE NÃO EXISTE!